Introdução
“O passado dá-nos um sentido de identidade, de pertença e faz-nos conscientes da nossa continuidade como pessoas através do tempo”
Elsa Peralta da Silva
O presente artigo tem como objetivo mostrar a importäncia da cultura na constituição do patrimônio. Patrimônio este que será analisado a partir dos elementos culturais identitários locais que se relacionam à principal atividade, no caso a vitivinicultura, cujas marcas na paisagem são evidentes.
Serão abordados os conceitos de cultura, patrimônio, identidade e território. O eixo condutor que interligará esses conceitos para a constituição do território é a uva e o vinho. Uva e vinho, aqui considerados como elementos fundantes de uma cultura ja reconhecida em diferentes escalas do enoturismo: a cultura italiana. Foi a chegada dos italianos no sul do Brasil, em 1875, que marcou o início de uma cultura cujos elementos se enraizaram nas áreas onde as famílias foram instaladas. Entre esses elementos se encontra a uva e por consequencia o vinho que constituem a expressão viva da cultura italiana. O vinhedo foi o tansformador da paisagem, demarcou o território da colonização italiana, tornou-se símbolo identitário da cultura local e do patrimônio.
Patrimônio, Identidade e Território
A Constituição Brasileira de 19881 em seu artigo 216, define como patrimonio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
A legislação brasileira, portanto, enfatiza a natureza material e imaterial do patrimônio, seus elementos identitários cujo significado remete à vivencias eternizadas nos bens, nas paisagens, no imaginário que diz quem és, de onde vens e para onde pretendes ir. É perpetuação da memória de uma coletividade, de varios sujeitos, de comunidades e, portanto, dos povos. Embora seja concreto, o patrimônio é marcado por subjetividades, por significados nos quais o papel da memória é fundamental. Esta subjetividade, esta vivência plena de significados expressam a identidade. Logo, é possível afirmar que o patrimônio é das comunidades e o seu fortalecimento se dá a partir das identidades construídas enraizadas nos lugares.
A materialidade do patrimônio é tudo aquilo que se vê, que se percebe, que está escrito na paisagem. No entanto a imaterialidade tem um significado mais profundo uma vez que, por ser socialmente construído, se expressa através de formas intangíveis, ou seja, é o conhecimento, são as práticas comunitárias do presente, do passado, transmitidas, oralmente ou por meio de práticas, pelas famílias, pelas comunidades ou de pessoa para pessoa. A imateralidade do patrimônio também é expressão de representações, conhecimentos e saberes materializado nos instrumentos, objetos, artefatos e espaços culturais. Esse patrimônio que é cultural e que é transmitido através das gerações, se recria constantemente de acordo com as características do meio e da relação que os grupos sociais, as comunidades estabelecem com os lugares onde vivem. Sua história, seu sentimento de identidade e de pertencimento expressam também essa relação fortalecida pela língua, pelas práticas religiosas, pelas festas, pelos saberes, pela tradição. Isto possibilita afirmar que o patrimônio imaterial se constrói em lugares, em espaços, por pessoas, por comunidades plenas de valores e significados.
Segundo Silva (2000)2, “o património não é só o legado que é herdado, mas o legado que, através de uma selecção consciente, um grupo significativo da população deseja legar ao futuro”. Para a autora há uma escolha cultural, ou seja, uma vontade de que as gerações futuras herdem este patrimônio o que não impede a existência implícita da posse, do poder de um grupo sobre este legado. A ideia de posse remete a ideia de valor atribuído a este patrimônio sujeito à moda e ao gosto do momento. É este o patrimônio cultural que para Silva (2000) “compreende todos aqueles elementos que fundam a identidade de um grupo e que o diferenciam dos demais”. A identidade presente construída com os elementos do passado possibilita efetivamente o sentimento de pertencimento e de identificação com a comunidade ao mesmo tempo que estabelece as diferenças com outras comunidades. Neste sentido, o elemento determinante que define o conceito de patrimônio é a sua capacidade de representar simbolicamente uma identidade.
Garnier e Serre (2015), destacam que a valorização do patrimônio está marcada por elementos identitários e territoriais que provocam mudanças significativas. A Figura 1 possibilita identificar as relações que se estabelecem entre patrimônio, identidade e território.
Fica evidente na Figura 1 que algumas ações se fazem necessárias para o reconhecimento e fortalecimento do patrimônio, entre elas a criação de políticas públicas assim como a interação e o envolvimento do poder local com as comunidades. O somatório das ações advindas das comunidades, do poder local, dos empresários e dos turistas contribuirão para o fortalecimento das identidades coletivas consideradas aqui como fundamentais para a constituição de um território do vinho coeso e reconhecido como patrimônio.
Este território, segundo Medeiros (2015), se constitui como um espaço cultural, de identificação, de pertencimento, mas ao mesmo tempo é um espaço político, um lugar do poder onde as ações atendem demandas políticas, econômicas e sociais. O território passa então por processo de valorização no qual o sentimento de pertencimento tem importante contribuição. É, pois, neste território constituído que o turismo marca sua presença como resposta à valorização do patrimônio, à forte presença de identidades locais ligadas à uva e ao vinho, e sobretudo às políticas públicas orientadas para atender as novas demandas do enoturismo.
E o enoturismo traz consigo fortes implicações econômicas e sociais que marcam a paisagem, alteram a dinâmica dos lugares, criam novas atividades e incorporam novos elementos à infraestrura local com o objetivo de atender o turista. Mas é possvel estabelecer uma relação do patrimônio com o enoturismo? É esse o tema a ser abordado na sequencia deste artigo.
Patrimônio e Enoturismo
Para compreender a relação entre patrimônio e enoturimo, inicialmente se faz necessário definir o que é enoturismo.
Para Falcade, (2001, p. 39-53), “o enoturismo pode ser definido como o deslocamento de pessoas, cuja motivação está relacionada ao mundo da uva e do vinho”.
Já Hall (2004, p. 3), coloca que “o enoturismo pode ser definido como visitações a vinhedos, vinícolas, festivais de vinhos e vivenciar na prática as características de uma região de uvas e vinhos”.
Valduga (2012, p. 130) por sua vez define “o enoturismo como um fenômeno dotado de subjetividade, em que a principal substância é o encontro com quem produz uvas e vinhos”.
Mas também é possível afirmar que o enoturismo é uma arte de viver, uma satisfação, um prazer. Esta arte de viver deve ser privilegiada e deve associar o vinho à uma exigência de qualidade.
O vinho e o vinhedo são dois elementos indissociáveis que constituem o mesmo patrimônio cujo valor só será efetivamente reconhecido através de ações e de atividades do enoturismo implantados no território.
De acordo com a Agence Outremer (2015), para que o turista tenha interesse pelos territórios do vinho, com sua paisagem marcada por seus extensos vinhedos é fundamental que lhe seja transmitida a valorização do patrimônio geográfico e das paisagens naturais; a história do lugar com suas tradições, seus saberes, sua arquitetura bem como a importâcia da vitivinicultura na economia local. Mas, um elemento que não deve ser omitido, nestas ações para atrair o turista, é o patrimônio humano, ou seja, as pessoas que ali vivem, que plantam a uva, que produzem o vinho, que transmitem seus saberes de geração em geração.
Importante nessa relação é a integração do enoturismo com a paisagem. Segundo Berque (1998), a paisagem não se reduz aos dados visuais do mundo que nos envolve, não reside nem somente no objeto, nem somente no sujeito, mas na interação complexa destes dois termos. A paisagem existe na sua relação com um sujeito coletivo pois foi a sociedade que a produziu, que a reproduz e que a transforma em função de uma certa lógica. Procurar definir essa lógica para compreender seu sentido é, portanto, o ponto de vista cultural. Afirma ainda o autor que a paisagem é a dimensão sensível, estética e afetiva da relação que o indivíduo socializado construiu com o território. Logo, a paisagem não pode ser o olhar de um só, mas deve advir de um senso comum. A paisagem resulta da interação das potencialidades de um lugar e o olhar daquele que com ela interage. Como traçar um paralelo entre apreciar a paisagem e apreciar o vinho? O que há em comum entre eles? Assim como o vinho a paisagem é complexa, é um produto vivo que evolui, é o resultado da história, das práticas encontradas e identificadas. É possível afirmar que o encontro do homem com a paisagem assim como o do homem com o vinho é feito de percepção, uma vez que com facilidade se identifica uma paisagem vitícola com aspectos lineares e/ou regulares dos seus vinhedos que acompanham a ondulação do terreno e a exposição ao sol. A paisagem vitícola, portanto marca a paisagem e expressa um quadro de vida identitário, diretamente relacionado aquilo que produz, a uva e o vinho. São poucas as paisagens que fixam e expressam sua identidade com tanta clareza como esta. Por essa razão é que deve se considerar seu potencial turístico, que ainda se encontra pouco desenvolvido, seguindo o modelo francês que oferece “a degustação da paisagem” nos eventos turísticos, na qual pode ocorrer uma harmonia entre a paisagem com suas especificidades e o vinho também carregado de elementos identitários. A paisagem é promotora de seus produtos, em especial o vinho. É o vinho o portador de imagens, de vocabulários, de lugares, de terroirs, de valorização de saberes e de exigências. O vinho traz consigo uma linguagem de sentidos e porque não dizer, de sensualidade expressa no encantamento que provoca, na magia que seduz, no imaginário que se apropria dos sujeitos. É, pois, a receita da felicidade, da harmonia, da beleza, da variedade, da diversidade, da generosidade e, sobretudo da festa.
Todos estes elementos devem ser apropriados pelo enoturismo que ao considerar os lugares do vinho trará consigo o patrimônio e os produtos a ele associados as atividades ligadas à sua produção e ao seu consumo e fundamentalmente à cultura. E o vinho é sim um elemento da cultura, é ele o resultado de um trabalho humano e seu consumo aproxima e entrelaça os homens.
O enoturismo traz consigo o melhoramento do quadro de vida nas regiões vitícolas e passa a oferecer novas necessidades de conhecimento e de afirmação para o turista. São novas aspirações e uma nova relação estética e até mesmo sensual que se estabelece entre o vinho e o turista. Portanto o enoturismo é potencialmente uma nova realidade social e econômica que se apresenta nas regiões vitivinícolas brasileiras e que são a expressão da cultura, em algumas dessas regiões. É um setor dinâmico com múltiplas iniciativas, projetos e com a atuação de diferentes atores, mas que carece de políticas públicas direcionadas para este setor, além de uma legislação que possa ser devidamente aplicada. Associado a esses elementos há uma questão que toma a direção contrária daquela que poderia promover o enoturismo acarretando o crescimento e o desenvolvimento das regiões vitivinícolas. A questão é precisamente a sociedade moderna industrial que valoriza o temporário, as relações efêmeras e que é caracterizada pela ausência de um significado em relação ao patrimônio histórico e cultural, inibindo qualquer sentimento de pertencimento.
O lugar de pertencimento e de identidade
O sentimento de pertencimento é uma realidade entre os imigrantes italianos da Serra Gaúcha, mais precisamente do Vale dos Vinhedos (Figura 2). O território para esses imigrantes é sua vida, seu trabalho. Sua identidade com o vinho, com os vinhedos é muito forte e isto é motivo para longas conversas com os amigos assim como a realização de festas comemorativas. A região sofreu mudanças, surgiram hotéis para atrair turistas, aumentou a produção de uvas viníferas e de vinhos, o que levou ao reconhecimento do Vale dos Vinhedos como uma importante região vitícola brasileira. Valduga (2011) afirma ser esta a região onde começou o enoturismo ligado à influência cultural e à tradição dos imigrantes italianos. Este turismo permite o endosso de práticas sociais internas de atores que impõem sua visão de mundo neste jogo territorial. São eles que, associados à população em geral, possuem a intencionalidade em desenvolver o turismo cujo patrimônio deve ser validado pelo olhar exterior a este território (Lazzarotti, 2003). Neste ponto se torna fundamental o papel da comunicação para o reconhecimento externo deste patrimônio e isso foi acontecendo com a organização de exposições, de feiras locais, de festivais e, sobretudo, de festas, como a Festa da Uva, a FENAVINHO e a FENACHAMP.
Outro elemento importante que fortaleceu o enoturismo no Vale dos Vinhedos foi a criação da APROVALE - Associação dos Produtores de Vinhos Finos do Vale dos Vinhedos, cuja missão é promover o desenvolvimento sustentável da região através da gestão da produção; da busca por uma posição no mercado; do cooperativismo; do estabelecimento de relações com a comunidade, com o poder público e com o comércio turístico; além de busca pela excelência de seus produtos e serviços, sem esquecer a proteção e a preservação da paisagem natural e da identidade cultural.
Cabe destacar que atualmente a expressão Vale dos Vinhedos ultrapassa a existência geográfica de cantinas, restaurantes típicos, hotéis, albergues e demais serviços destinados aos turistas. Isto porque o que realmente permanece na memória do turista é a paisagem formada por um extenso mosaico de vinhedos tradicionais e/ou modernos; são os plátanos sustentando os vinhedos; são as cercas de basalto separando os vinhedos, são as cantinas modernas e/ou tradicionais, são as construções modernas com marcas da tradição, são as famílias presentes nas cantinas com suas habitações ao lado, preservando sua identidade patrimonial, sua cultura e sua tradição.
Considerações finais
O Vale dos Vinhedos possui uma identidade própria com suas especificidades, suas marcas históricas e seu roteiro enoturístico que já tem reconhecimento nacional, sendo inclusive um dos roteiros mais conhecido no Brasil. Esta identidade está ligada exatamente à vitivinicultura que foi passada de geração em geração na qual o vinho é a sua expressão materializada no território.
Identidade e território são, sem dúvida, dois conceitos de grande significação e de fundamental importância para o desenvolvimento do turismo. No entanto, muitas vezes, ocorre a banalização desses conceitos, ao omitirem a história daqueles que foram a base para a constituição do território, com excessiva valorização do novo, sem história, sem identidade.
É possível então afirmar que o Vale dos Vinhedos é marcadamente um território do vinho que traz consigo sua história, sua tradição e sua cultura. É um patrimônio a ser preservado com sua paisagem, que segundo Dardel (2011, p.32) “não é, em sua essência, feita para se olhar, mas a inserção do homem no mundo, lugar de um combate, manifestação do seu ser pela vida, com os outros, base do seu ser social”. No entanto com as mudanças que ocorreram decorrentes da criação de elementos atrativos para o turista, essa antiga região de colonização italiana, hoje reconhecida como rota do enoturismo, se transforma e é possível afirmar que torna um lugar de combate pois começa a demandar por políticas públicas que venham ao encontro de sua patrimonialização.
Os turistas, de diferentes idades, sequer percebem, ao mergulharem na cultura vitícola italiana, que os serviços oferecidos, as atrações turísticas organizadas para recebê-los são também parte deste patrimônio cultural. O enoturismo, então, provocou mudanças sociais, políticas e econômicas no Vale dos Vinhedos, enraizou profundamente a identidade com o vinho e a sua relação com a cultura italiana. A volta ao passado se faz necessária nesta construção identitária e o vinho, assim como o vinhedo, presentes na história do Vale dos Vinhedos é que pontuam este território com suas marcas expressas na paisagem. A tradição, os saberes e a cultura da uva e do vinho resistem e são patrimônio. O Território do Vinho da Serra Gaúcha, portanto já se encontra na luta pela preservação de seu patrimônio, e se constitui um território de resistencia cultural e patrimonial.
E concordando com Veschambre (2009), a demanda pelo patrimônio efetivamente contribui para a construção das identidades sociais uma vez que legitima o crescimento pela apropriação do espaço. Mas, é fundamental também considerar a paisagem tradicional como elemento de identificação e de promoção desses territórios culturalmente constituídos. De acordo com Pastor (2006), o uso desse patrimonio cultural como atrativo turístico é amplamente promovido pelas administrações como forma de ampliar a oferta do turismo cultural. Sugere o autor que, em primeiro lugar, se delimite os vinhedos com suas características especificas e se organize um plano de proteção com o auxílio dos proprietários. Num segundo momento se deve buscar e/ou construir junto com o poder político local uma legislação que proteja este patrimônio. Portanto, devem ser os municípios, nos quais os vinhedos embelezam suas paisagens, os primeiros a protegerem esse patrimônio com atividades turísticas cujo eixo central seja o vinho. É este o caminho para que no futuro o Vale dos Vinhedos, patrimônio da cultura italiana, da uva e do vinho seja oficialmente protegido.