Introdução
A sustentabilidade é um desafio à sociedade e aos sistemas de produção, seja por um aumento no nível de percepção e exigência dos consumidores e públicos de interesse ou à crescente pressão aos sistemas naturais. Por outro lado, trabalhar o tema sustentabilidade apresenta oportunidades para inovação em produtos e processos, ganho de eficiência operacional, além de uma maior valorização de aspectos locais e territoriais.
O Brasil é considerado referência em diversas áreas com relação à gestão ambiental e ao debate envolvendo sustentabilidade e suas macroquestões. Todavia, considerando o setor vitivinícola, o país ainda não possui uma proposição metodológica para embasar programas com um enfoque integrado de sustentabilidade, como pode ser visto em outros países.
Muitas vezes, as discussões envolvendo a sustentabilidade colocam os sistemas convencionais de cultivo em oposição aos sistemas de base ecológica (como agricultura biodinâmica, biológica, agroecológica, entre outras), sem considerar sistemas alternativos já existentes, a exemplo da produção integrada, ou o desenvolvimento de novas propostas.
Restringir a discussão da sustentabilidade à adoção de sistemas de produção de base ecológica pode ser um fator limitante, considerando-se que em 2017, de acordo com o Censo Agropecuário, apenas 1,4 % dos estabelecimentos rurais brasileiros praticavam agricultura orgânica e eram certificados1. No caso da vitivinicultura, a produção orgânica representa apenas cerca de 4 % da área plantada mundial, com produção concentrada na Itália, Espanha e França2. No Brasil, a produção de uvas em sistemas de base ecológica concentra-se em variedades híbridas e americanas (tais como Isabel, Concord e Bordô), normalmente destinadas para elaboração de sucos e vinhos de mesa e para o consumo in natura.
Se por um lado a conversão para uma produção orgânica não é possível em todos os contextos, isso não quer dizer que não se possam tomar ações alternativas a um sistema de produção convencional, de modo a internalizar princípios de sustentabilidade na produção. Trata-se de construir uma terceira via que viabilize os parâmetros de produção, aliando compromisso com tomada de ações que tornem as práticas mais sustentáveis. Além disso, a estruturação de um sistema de gestão vai além do tema das tecnologias de produção, implicando alinhamento estratégico nas decisões e no planejamento a médio e longo prazos, o que deve se refletir nos processos da organização.
A sustentabilidade na viticultura também vem sendo tema de debate no âmbito da Organização Internacional da Uva e do Vinho (OIV) e conta com diversos documentos de suporte3. Para a OIV, vitivinicultura sustentável é um conceito amplo, definida como:
[...] abordagem global na escala de sistemas de produção e processamento de uvas, que combina tanto a sustentabilidade econômica das estruturas e dos territórios, a obtenção de produtos de qualidade, tendo em conta as exigências da viticultura de precisão, os riscos relacionados ao ambiente, à segurança do produto e à saúde dos consumidores e a valorização dos aspectos patrimoniais, históricos, culturais, ecológicos e paisagísticos4.
Na abordagem da OIV é possível verificar a presença de questões ambientais, mas também aspectos econômicos e imateriais ligados ao território. Também são relacionadas questões técnicas relativas às decisões de produção. A normativa de 2016 avança em direção aos princípios de aplicação e, finalmente, a normativa de 2020 trata da implantação de sistemas de gestão da sustentabilidade.
Paralelo a isso, diversos países produtores vêm articulando programas e ações em nível regional ou nacional, que podem assumir a forma de auto-avaliação, certificação, selo ou pegada5. Dentre as principais iniciativas se destacam a África do Sul, Austrália, Nova Zelândia, Califórnia (EUA) e o Chile. Trabalhos anteriores identificaram uma série de iniciativas envolvendo viticultura sustentável no Brasil, mas há uma lacuna em termos de protocolos sistematizados que respondam às problemáticas do setor6.
O presente artigo apresenta parte das ações e resultados de projeto desenvolvido em cooperação com a Vinícola Chandon do Brasil e o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (FAPERGS), no intuito de estruturar um programa de gestão de sustentabilidade na viticultura. A proposta envolveu a internalização de princípios e práticas de sustentabilidade na viticultura, estruturando um programa de gestão que proporcione condições para continuidade e acompanhamento.
A pesquisa foi dividida em 3 fases:
- Diagnóstico para identificar o estado atual das operações e atividades realizadas em nível de sustentabilidade, além de observações verificação de registros e documentação;
- Estruturação de indicadores e parâmetros para monitorar e avaliar o emprego da sustentabilidade, com proposta de parâmetros de qualidade para os indicadores;
- Sistema de acompanhamento e difusão da aplicação do sistema de gestão nas vinícolas.
O texto a seguir traz a caracterização da empresa da região, seguido pela apresentação do protocolo de análise. Em seguida são apresentados os principais resultados, seguido das conclusões e perspectivas.
Caracterização da empresa e da região
A Vinícola Chandon do Brasil foi inaugurada em 1973, em Garibaldi, RS, sendo pioneira no Brasil ao especializar-se na elaboração de espumantes. A empresa se posiciona como líder no segmento de vinhos espumantes Premium, elaborando seus produtos a partir das cultivares de Vitis vinifera Chardonnay, Pinot Noir e Riesling Itálico. Além de atuar em parceria com produtores familiares da Serra Gaúcha, a empresa possui vinhedos em Garibaldi e Encruzilhada do Sul.
A vinícola foi uma das primeiras empresas a iniciar a implantação de vinhedos de Vitis vinifera em Encruzilhada do Sul, a partir de 2000. Possui atualmente 110 hectares em produção e planeja implantar 10 hectares neste ano. Na propriedade são empregadas 23 pessoas permanentes e durante os períodos de poda e de colheita são gerados cerca de 150 empregos temporários. A vinícola promove também parcerias com novos produtores de uvas, disponibilizando assistência técnica tanto na implantação de vinhedos como no acompanhamento do cultivo e na aquisição da produção, o que vem contribuindo para a expansão da viticultura no município.
O potencial edafoclimático para produção vitícola na Serra do Sudeste foi evidenciado pelo Zoneamento Agroclimático do Rio Grande do Sul, publicado em 19767. Até então, na região predominavam as atividades ligadas à pecuária extensiva e à agricultura de subsistência. A implantação do cultivo da uva ocorreu em maior escala devido ao interesse de vinícolas já estabelecidas na região da Serra Gaúcha, o que transformou a paisagem e a organização socioeconômica do município. De acordo com dados do Cadastro Vitícola do Rio Grande do Sul, em 2015, o município de Encruzilhada do Sul contava com 423,93 ha de vinhedos, em sua grande maioria (396 ha) em sistema de espaldeira, com predomínio das cultivares de Vitis vinifera Chardonnay (123,03 ha) e Pinot Noir (98,86 ha).
Os municípios localizados na mesorregião geográfica do RS conhecida por “Metade Sul” caracterizam-se pelo baixo dinamismo produtivo e estagnação social, culminando em baixos índices de desenvolvimento humano (IDH) no estado. O município de Encruzilhada do Sul, um dos maiores em extensão no estado, enquadra-se neste cenário. O PIB per capita em 2017 foi de R$ 20.706,73, ocupando a 411º posição no estado e o Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) em 2010 estava em 0,657. Em 2017, a proporção de pessoas ocupadas em relação à população total era de 15,4 % o que coloca o município em 310º lugar entre 497 municípios no estado.
Seu povoamento teve início no século XVII, com a presença de índios e missioneiros e, mais tarde, alemães e poloneses. De acordo com o IBGE8, a população estimada para o município em 2019 foi de 25,877 pessoas. De acordo com os dados do Censo Agropecuário de 20179, a agropecuária ocupa 5660 pessoas, sendo a maioria mão de obra familiar, visto que 4174 possuem laços de parentesco com o produtor rural. Das 1486 pessoas empregadas que não possuem laços de parentesco, 901 possuem trabalho permanente e 525 são contratos temporários. Estes dados ilustram as fragilidades econômicas e sociais que o município apresenta. Assim, a expansão da viticultura no município é uma oportunidade para geração de emprego e renda, contribuindo para o desenvolvimento local.
Protocolo de análise BaccuS
Para realização do diagnóstico em desempenho de sustentabilidade, utilizou-se o protocolo BaccuS, desenvolvido em tese de doutorado e já publicado. O BaccuS é um framework de gestão concebido para ser uma ferramenta flexível e adaptável a diferentes contextos. O framework é estruturado em forma matricial, relacionando 5 dimensões da sustentabilidade com 4 diretrizes, que são articuladas por temas, como pode ser visto no diagrama10.
As dimensões – ambiental, econômica, social, político-institucional e territorial – são perspectivas de leitura ou de apropriação da sustentabilidade. Já as diretrizes representam um percurso de desenvolvimento para avançar na adoção de práticas de sustentabilidade – da gestão, para a articulação e cooperação, evoluindo para a inovação e, finalmente, aprendizado e sustentabilidade. Cada dimensão possui temas, que articulam as diretrizes e dimensões, as quais orientam ações a serem tomadas. Já os temas são desdobrados em indicadores11.
Resultados
O projeto se iniciou com um diagnóstico, de modo a fornecer uma visão geral das iniciativas envolvendo sustentabilidade. A vinícola já possuía uma série de iniciativas em andamento, sejam locais, ou vinculadas ao grupo internacional do qual faz parte. Entre elas se destaca a certificação no Sistema PIUP (Produção Integrada de Uva para Processamento) e a ISO14001. Nesse sentido, uma das principais contribuições foi de sistematizar o sob conceitos de sustentabilidade, permitindo organizar as informações e subsidiar ações de planejamento.
O diagnóstico foi iniciado na dimensão ambiental, que foi tratada de forma ampla. Os principais destaques foram nos aspectos de energia, práticas agrícolas e biodiversidade. A vinícola já utilizava princípios de ecoeficiência para controle de energia. A partir de 2022 foram instalados painéis fotovoltaicos que respondem por 100 % do consumo de energia elétrica atual. Nas práticas agrícolas, a vinícola foi a segunda do Brasil a obter a certificação PIUP, que é o único protocolo certificável no tema, no país para produção sustentável (fora do sistema de certificação orgânico).
Entre as práticas atuais está a eliminação do uso de herbicidas em 100 % do vinhedo e redução dos inseticidas em cerca de 70 % na área, a partir do uso de compostos orgânicos e microrganismos. Com relação ao uso de agroquímicos, se trabalha com técnicas de precisão para eficiência de aplicação e com menor número de doses e volume de calda. Um dos pontos apontados como prioridade para aprofundamento da pesquisa foi a saúde do solo. Os cuidados com a conservação e melhoria do solo foram estudados através de análises físicas, químicas e biológicas, identificando fungos, bactérias e suas funcionalidades, para entender se os vinhedos plantados contribuem positivamente para o solo. A compactação do solo também é monitorada, por meio de um penetrômetro digital, para verificar se existe correlação entre a vida do solo e a compactação em cada área.
Com relação à biodiversidade, se destacam a adoção do manejo integrado de pragas, adubação verde, proteção de áreas úmidas, florestas e manutenção de campos nativo. Na propriedade, são mantidos 50,7 hectares como áreas de preservação permanente, incluindo matas ciliares, corredores de vegetação nativa e preservando áreas úmidas. Além disso, todas as demais áreas, incluindo as áreas de vinhedo, são mantidas com cobertura de espécies nativas. Um levantamento de biodiversidade identificou mais de 50 espécies compondo a cobertura vegetal do campo nativo nos vinhedos e na divisão de parcelas.
O tema foi identificado com prioridade para aprofundamento. No inverno de 2022 foram realizados levantamentos de flora e fauna na propriedade vinícola, que indicaram a presença de 57 espécies arbóreas nativas, pertencentes a 30 famílias, 90 espécies de aves, 6 de anfíbios e 20 de mamíferos, dos quais 3 em extinção. Ainda no tema biodiversidade, a vinícola aderiu ao projeto “Rota dos Butiás”, buscando salvar e proteger essa espécie endêmica do bioma pampa. Para tanto, foram plantados mais de 3000 exemplares de butiás na propriedade vinícola, que estavam campos de silvicultura e seriam derrubados.
Na dimensão social, foi escolhido aprofundar no tema dos trabalhadores safristas. O acompanhamento foi feito em duas safras, nas quais foram aplicados questionários individuais, totalizando 47 questionários em 2022 e 155 em 2023. O diagnóstico identificou uma predominância de mulheres (60 %), com baixa renda e escolaridade; para a grande maioria o trabalho na vinícola é a única atividade formal exercida ao longo do ano, apenas 7,8 % afirmaram ter outra atividade. Os dados indicaram um importante grau de satisfação com o trabalho, o que se reflete na permanência desses safristas ao longo dos anos: 24,5 % trabalham na colheita há 5 anos ou mais, 2,2 % há 4 anos, 16,1 % há 3 anos e 24,5 % 2 anos. A opinião sobre a chegada de empresas como a Chandon na região, foi toda expressa de forma favorável, afinal, na região não há muitas ofertas de emprego, por isso é comum o exercício de atividades informais, como trabalho doméstico, agricultura e outras atividades gerais.
As dimensões territoriais e político-institucionais são analisadas a partir de entrevistas com representantes do poder público municipal, de entidades representativas, do órgão de extensão rural e da escola agrícola. O objetivo foi perceber como a empresa se relaciona com a comunidade, qual o seu impacto no desenvolvimento local e qual a sua influência na expansão da cultura da vinha e do vinho. Foram feitas sugestões de aproximação com as instituições locais, como na oferta de estágios e integração em eventos da vinícola.
Entre as ações que decorreram das sugestões do diagnóstico está o fortalecimento da dimensão educação. A vinícola passou a oferecer visitas técnicas com tema de sustentabilidade no vinhedo e esta planejando ações locais para educação ambiental e também uma maior aproximação com a escola local. Também, o reforço no posicionamento como precursora da viticultura na região da Serra do Sudeste.
Outras ações decorrentes do projeto foi a incorporação de elementos do território de sustentabilidade nos produtos da empresa. Foi lançado pela vinícola, em 2022, o primeiro espumante de viticultura sustentável do Brasil, com 100 % de uvas certificadas no sistema PIUP. O espumante também traz no rótulo o termo “Serra das Encantadas”, fazendo menção à localização dos vinhedos, o que não acontece nos demais produtos. Também a expressão é utilizada na região para se referir ao local, destacando outros aspectos imateriais desse território. O produto possui QR-Code de rastreamento. Outro produto foi lançado em 2023, o "névoa das encantadas", ressaltando aspectos importantes da paisagem local. Seu lançamento e promoção incluem elementos da gastronomia da região e a participação de fornecedores locais. O lançamento foi realizado levando jornalistas para a região dos vinhedos, para que pudessem registrar a paisagem de neblina, típica das manhãs. Tudo isso contribui para divulgar a região e fortalecer os vínculos da vinícola com esse território.
Por fim, o ano de 2023 marcou os 50 anos da vinícola no Brasil. Os eventos de comemoração incluíram o destaque a elementos culturais de diversas regiões do Brasil. Foi renovado o compromisso em seguir avançando nas ações de sustentabilidade, expandindo para fornecedores e produtores parceiros.
Considerações finais
O projeto tem natureza de inovação e extensão tecnológica, voltado para a transferência de tecnologia. O framework BaccuS foi construído com consistência acadêmica, todavia, para além dos resultados científicos, se fazia necessária seu aperfeiçoamento para aplicação em novos cenários. Nesse sentido, a parceria com a vinícola Chandon foi essencial para o desenvolvimento dos instrumentos e formas de comunicação, para que os resultados da pesquisa sirvam realmente como suporte à tomada de decisão.
Todos os resultados foram sistematizados em relatório de desempenho, sugerindo prioridades baseadas numa escala de risco (gravidade, urgência e tendência). Os resultados obtidos indicam que o desenvolvimento do projeto contribuiu para fortalecer e expandir iniciativas de sustentabilidade num amplo leque, colaborando na divulgação de sistemas de viticultura sustentáveis.
O projeto segue, incluindo novas parcerias no Brasil e contexto internacional. A proposta é que possa ser formatado um modelo que seja de mais fácil replicabilidade, permitindo expandir as iniciativas para outros produtores.