Introdução
No ano em que a população mundial chegou a 8 bilhões1, é necessário considerar os desafios atuais e futuros para garantir clareza na tomada de decisões e, assim, a continuidade de qualquer atividade. A partir da compreensão e conhecimento do contexto atual e das experiências antecipadas, vislumbram-se múltiplas possibilidades. Por que considerar a viticultura no Antropoceno? Na prática, como viticultores podem ser mais assertivos frente ao cenário previsto? Desde o advento da agricultura industrial, o ambiente natural, juntamente com grande parte da biodiversidade, tem sido severamente danificado2. A agricultura fornece impacto negativo no uso da terra, se considerarmos as mudanças climáticas. Os agricultores têm ciência destas, ao experimentarem frequentemente eventos extremos como inundações, secas, degradação do solo, resíduos e poluentes nocivos3. Portanto, a agricultura é reconhecida como um fator chave nos crescentes riscos ambientais associados ao Antropoceno, e a intensificação sustentável da agricultura ajudará alimentar uma população crescente e garantir serviços ecossistêmicos em paisagens agrícolas através da conservação da biodiversidade4.
As discussões sobre a inserção desse aspecto insustentável do comportamento humano descrito pelo Antropoceno tornam-se, assim, inovadoras e trazem consigo a urgência de mudanças para um futuro socialmente mais seguro. Dialogando por meio do compromisso com a viticultura sustentável e reconhecimento do significativo impacto das ações humanas no planeta. Isso inclui abordagens como agricultura de conservação, sustentabilidade e intensificação ecológica, agroecologia e sistemas agrícolas diversificados, agricultura de precisão e agricultura orgânica5.
Quanto ao método, este estudo segue objetivos, sendo o principal iniciar uma discussão sobre a viticultura durante o Antropoceno, com aspectos da difusão de ideias, habilidades e conhecimentos vistos como centrais para visões superiores e sistêmicas de inovação, essenciais para promover as mudanças necessárias6. Como objetivo secundário, busca-se conceituar e contextualizar o Antropoceno para familiarização do setor e da respectiva responsabilidade compartilhada da época. Por fim, demonstrar aspectos e modelos produtivos adequados ao contexto apresentando um caso prático que emerge de maneira inovadora no atual contexto relacionando-as com conceitos que apoiam o entendimento da observação in loco. Este texto tem caráter qualitativo e exploratório e utiliza-se de revisão bibliográfica para alcance das proposições. As bases pesquisadas foram Scopus, Spinger, Science, EBSCO, Gale, JStour e Sagepub. Utilizando dos termos individualizados e combinados para seleção de artigos: antropocene, viticulture, sustainable, food systems e great acceleration.
Antropoceno: aspectos introdutórios e provocações para mudanças
Perceber as mudanças frequentes aos ecossistemas e iniciar os diálogos deste estudo rememorando a densidade demográfica mundial pode parecer inadequado. No entanto, é essencial para ilustrar o Antropoceno enquanto momento inédito em que a presença humana passa desestabilizar sistemas terrestres7. As atividades humanas superam os processos naturais, a exemplo da concentração atmosférica de CO2, desmatamento e aumento da queima de combustíveis fósseis, de maneira a justificar a designação de uma nova época geológica8. A designação desta nova Era permanece com acaloradas controversas científicas e a formalização estratigráfica pode representar reconhecimento “oficial” de que o mundo mudou, substancialmente e irreversivelmente, por meio da atividade humana9.
Quanto ao início do Antropoceno, correntes apontam para 1750, com o início da Revolução Industrial e toda transição global. Dessa forma, o ano de 1800 d.C. poderia ser razoavelmente escolhido como seu primeiro estágio10. Uma segunda fase ainda em curso é denominada Grande Aceleração iniciada em meados de 1945 aonde evidências das ações antrópicas ficam mais perceptíveis e exponenciais: a população dobrou em apenas 50 anos, chegando a 6 bilhões no final do século XX; o número de veículos motorizados aumentou drasticamente de 40 milhões no final da Segunda Guerra para quase 700 milhões em 1996; e a população mundial passou a concentrar-se mais em áreas urbanas, de 30 % para 50 % de 1950 a 200011. A ocorrência de resíduos de agrotóxicos em águas profundas em locais de viticultura intensiva é uma evidência desta problemática12.
Entende-se que a “Grande aceleração”, logo perderá amplitude em função da escassez de recursos, ao passo que a humanidade hoje dotada de capacidade intelectual e recursos tecnológicos passará a entender o quanto suas ações trazem riscos à sua própria existência13. Então a partir disto, passará a construir e alterar as formas de produção e consumo para diversas das que trouxeram o advento desta nova era. Então passaremos para a fase do “Antropoceno Consciente de si Mesmo” com ações propositivas de mudanças14.
Logo, a mudança do paradigma produtivo se justifica. Mesmo que por vezes o sistema convencional de produção alcance maiores rendimentos em produtividade, o manejo orgânico do vinhedo implica em menor consumo de energia e, portanto, menos emissões de GEE além do resultado econômico final ser superior uma vez que maior alcança preço de comercialização maior e menores custos de manejo15. A viticultura de precisão, com otimização de mecanismos de irrigação também conferem sustentabilidade e contribuem para minimizar a pegada hídrica das videiras16.
A biodiversidade é favorecida em sistemas ecológicos em comparação com sistemas intensivos onde existem perdas de espécies da tradicional paisagem vinhateira em função de herbicidas, fungicidas e outros insumos17. As costumeiras plantas de cobertura conferem benefícios aos sistemas orgânicos ao propiciar maior atividade microbiana, superior concentração de matéria orgânica dente outros nutrientes e no longo prazo contribuem para melhor qualidade dos frutos18. Ademais, áreas de cultivo orgânico possuem maior incidência de organismos benéficos que atuam como inimigos naturais para doenças de solos19. Fontes de energia renovável podem e devem ser utilizadas como novo modelo energético para descarbonização, além de oferecer um produto para consumidores que valorizam vinhos ecologicamente corretos20.
Portanto, a literatura elenca inúmeras motivações para aceitar a superioridade de sistemas sustentáveis. Logo, considerar a responsabilidade antrópica intrínseca aos sistemas atuais é essencial para adoção de mudanças que contribuirão para superação das implicações impostas pelo Antropoceno. Realizar mudanças sustentáveis parte de um “querer” coletivo e são bem-vindos diálogos que emergem de maneira inovadora iniciando o movimento de consciência para a ação neste setor. Logo, destacando o caráter de mudança possível, este estudo retrata a iniciativa de um grupo de viticultores no contramovimento do Antropoceno. Os quais a partir de organização coletiva buscam novos rumos de comercialização para viabilizar seus cultivos agroecológicos.
Inovação para superar o antropoceno
Reconhece-se que a inovação pode ocorrer em todos os setores da economia21, afinal, o sucesso ou o fracasso de qualquer organização está na escolha de sua estratégia, pois a busca pelo sucesso deve sempre levar em conta o ambiente competitivo e as diferenças entre organizações22. A viticultura pode facilmente se apropriar de formas de inovação, seja de produto, processo, organizacional ou de marketing23 para evoluir enquanto atividade e elevar a prosperidade aos viticultores familiares. Desta forma, as estratégias produtivas e organizacionais da agricultura familiar são fundamentais para responder ativamente aos desafios emergentes, e a forma como este grupo se insere nos mercados pode ser inovadora, na contramão da tradicional existência de intermediários comerciais no contexto24. Ademais, os usos de tecnologias, integração de mercado e organização social têm uma clara correlação positiva com a renda25. Enquanto, estratégias de diferenciação são primordiais para garantir competitividade nos mercados com crescentes padrões de exigência26.
Portanto, dada a importância da inovação para a competitividade, apresenta-se um grupo de viticultores familiares e sua distribuição da produção de uva orgânica em busca de um ambiente fora dos limites de sua propriedade na pequena cidade do interior. No caso estudado, em uma cidade com tradição de vitivinicultura pequenas propriedades não garantem renda adequada para famílias com pequenas extensões de vinhedos. Pois a uva destinada para vinificação possui um valor comercial que passa a ser interessante apenas em volumes elevados, também o preço é pré-estabelecido impedindo negociações e barganhas. Considerando a característica de pequena propriedade, um grupo de viticultores passou pela transição agroecológica certificando nos padrões legais nacionais de produção orgânica suas propriedades objetivando maior autonomia no momento da comercialização, tanto no aspecto de preço de venda quanto ao destino pretendido.
Neste contexto se expõe a viticultura orgânica como vantajosa, sendo terreno fértil para difundir inovações e ampliar a competitividade no âmbito da agricultura familiar. Entende-se que a inovação na viticultura orgânica pode estar associada aos esforços de manejo de solo para otimização da matéria orgânica, elemento essencial para qualidade dos solos e frutos e consequentemente de produtos vitícolas27. E enquanto difusor de inovação no segmento, redes são eficientes uma vez que atuam ligando pessoas que representam pontos de vista específicos, tecnologias e práticas sociais, levando em consideração a configuração consultiva e trocas cotidianas28. Quanto ao desafio de aumentar a competitividade e sustentabilidade, estratégias para uma melhor gestão da quantidade, qualidade e diferenciação do produto se alinham à demanda do consumidor e às preferências do mercado para a indústria global de uvas e vinhos29. Além de alianças estratégicas e associações que gerarem fortalecimento setorial30.
A vitivinicultura sustentável já foi convencionada pelo setor como um esforço global aplicável para toda cadeia com finalidade de agregar a sustentabilidade, produzir com qualidade sem oferecer riscos ao ambiente, aos produtos e aos consumidores, além de valorizar aspectos patrimoniais, históricos, culturais, ecológicos e paisagísticos31. Logo, a viticultura orgânica é aliada enquanto estratégia de cultivo e influencia positivamente crescimento, qualidade e produtividade das videiras32. Além de apresentar interessante desempenho sob aspecto financeiro33. Em resumo, reduz o impacto ambiental e aumenta a qualidade do solo no longo prazo em cultivo de uvas enquanto mantém a lucratividade34.
Discussões e resultados: o caso dos viticultores agricultores familiares orgânicos de são marcos
Na pequena cidade da Serra Gaúcha, ao nordeste do estado, localiza-se o município do qual pertence o grupo que ilustra este estudo. Trata-se de um grupo de agricultores familiares, que trabalham prioritariamente com fruticultura. Sendo a viticultura a atividade mais representativa. Este grupo organizou-se oficialmente no ano de 2013 e atualmente conta com sete famílias, destas quatro dedicadas a viticultura para comercialização in natura. Este grupo trabalha desde sua formação com viticultura sustentável, sendo parte da Rede Ecovida de Agroecologia. Possuindo certificação orgânica nos moldes da lei nacional, a partir do sistema participativo de garantia (SPG) da Ecovida. Toda estruturação produtiva ocorreu de maneira próspera, no entanto a inserção do grupo nos mercados tornou-se desafiadora ano após ano. Logo, da mudança do paradigma produtivo do convencional para o orgânico (2013) intensificou o problema uma vez que o mercado local não absorveria a produção do grupo, assim como o mesmo não possuía meios distribuição nem destinos de venda.
A partir do exposto, percebe-se que a comercialização também demanda alternativas aos modelos tradicionais. Em resposta, organizações de agricultores orgânicos traçam rotas de comercialização motivadas por ideias de comercialização justa para atender consumidores na contramão dos sistemas dominantes, busca-se sistemas mais inclusivos e sustentáveis35. Além dos supermercados, os pontos de circuitos curtos de comercialização (CCCs) passam a ser reconhecidos pelos consumidores como locais interessantes para aquisição de alimentos frescos, direto do produtor e com precificação adequada para ambos36. Os CCCs37 fundamentam-se sobre princípios de reciprocidade enraizados na construção social dos mercados e suas conexões, correspondem a uma lógica de compromisso e se materializam em canais de troca de proximidade entre elos de produção e consumo sendo um inovador fenômeno de interação social emergente da agricultura familiar38.
No âmbito de redes, a conversão orgânica do grupo aconteceu através de Sistema Participativo de Garantia (SPG) da Ecovida, possibilitando conexão com outros agricultores que buscavam adotar novos modelos comerciais para seus cultivos. Na prática, rotas rodoviárias ligam os viticultores até pontos de comercialização acessados pelos consumidores. Em São Marcos, em tempos de vindima são escoados através do circuito aproximadamente 100 toneladas de uvas para consumo in natura principalmente para os estados de Santa Catarina, Paraná e São Paulo. As rotas são solidárias, sendo o custo do transporte dissolvido pelo volume transportado de cada agricultor. Portanto, os intermediários que agregam valor final são excluídos. Esta não é uma interação temporária, há transações periódicas ao longo do ano abrangendo outras culturas produzidas pela unidade de produção e distribuídas pelo sistema. Quanto à diferenciação, como estratégia, desde o início dos trabalhos o grupo padronizou as embalagens e a qualidade das uvas enviadas garantindo uma identidade reconhecida e requisitada pelos consumidores. Considera-se os CCCs como inovação social da agricultura familiar para organizar interesses e garantir a sustentabilidade e o acesso aos mercados39. Desta forma pode-se destacar a agricultura familiar como terreno fértil para inovações a partir de necessidades e atitudes proativas acerca de problemas compartilhados.
Tal organização de agricultores, possui caráter de inovação social. Uma vez que a partir de uma necessidade coletiva e da organização dos envolvidos, modela-se solução viável para enfrentamento das dificuldades cotidianas. Assim, safra após safra as colheitas orgânicas de agricultores familiares ecologistas seguem fluxo logístico a partir do Circuito. Chegando aos mais remotos locais do país. Fazendo conexão entre consumidor e agricultor. Eliminando intermediários, resultando em um processo distribuição justo. Aonde quem produz recebe remuneração adequada, sem onerar o consumidor final. Configurando um excelente exemplo de movimento prol sustentabilidade imerso no setor vitícola em meio às adversidades impostas pelo mercado e advento do Antropoceno.
Conclusão
Revela-se no texto a importância da convergência da temática: viticultura/Antropoceno, reconhecendo que a atividade contribui para mudanças ambientais, como quaisquer ações antrópicas. Desta forma, evidencia-se relevante questionar possibilidades de mudança considerando o aprendizado replicável em iniciativas já implantadas. Uma vez que o modelo produtivo aqui exemplificado acontece com práticas contrárias às que contribuíram para o advento do Antropoceno. Observa-se que a produção orgânica familiar possui capacidade de apoiar a construção de sistemas alimentares mais adequados, resilientes e sustentáveis. Além de possuírem capacidades importantes de abastecimento local, ao passo que sistemas globalizados se especializam em cultivos para exportação, em detrimento das demandas alimentares locais. Logo, dietas mais sustentáveis dependem da produção e cultivos biodiversos com práticas conscientes que considerem as dimensões sociais, ambientais e econômicas da sustentabilidade.
Concluindo, acredita-se que a viticultura orgânica familiar é dotada de capacidades e conhecimentos para concretizar uma mudança global na produção vitícola, contribuindo com alavancagem da almejada sustentabilidade. Uma vez que desta, pode-se replicar excelentes práticas que contemplam as múltiplas dimensões da sustentabilidade, sejam cultivos conservacionistas em campo, ou buscas por mercados adequados às características produtivas do modelo, ou mesmo a construção de fluxos para chegar de maneira viável aos consumidores.