Introdução
A viticultura brasileira ocupa uma área de 80 mil hectares, sendo que dos 353 milhões de litros de vinhos e derivados produzidos no ano de 2016, a grande maioria é originada de uvas da espécie Vitis labrusca e seus híbridos. A produção de vinhos de Vitis vinifera resume-se a apenas 19,6 milhões de litros anuais, provenientes basicamente do estado do Rio Grande do Sul, e em menor escala dos estados de Santa Catarina, Bahia, Pernambuco e estados do Sudeste, como Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. A produção nacional de vinhos finos representa somente 17% do consumo interno, sendo o restante importado, principalmente da Argentina, Chile, Portugal e outros países da Europa (UVIBRA, 2017).
A origem desta disparidade entre demanda por vinhos finos e produção nacional encontra-se exatamente na dificuldade de adaptação das cultivares de Vitis vinifera às condições climáticas existentes nas tradicionais regiões vitícolas brasileiras. Em Minas Gerais, e a exemplo do que ocorre com boa parte das regiões vitícolas do sudeste brasileiro, o período de colheita coincide com a época de maior intensidade pluviométrica, motivo responsável pela incompleta maturação das uvas, baixa concentração de açúcares, redução da acidez total, menor síntese de polifenóis e comprometimento da qualidade sanitária dos frutos. Nessas condições, torna-se inviável a obtenção de matéria-prima adequada para elaboração de vinhos finos de qualidade, notadamente de vinhos tintos.
Para a otimização da produção de vinhos finos nessa região tem-se buscado, através de pesquisas, a introdução de novas variedades de videira mais adaptadas, combinações de copa/porta-enxertos e outras técnicas de manejo, como a dupla poda, que permitem expandir a exploração de vinhedos mais produtivos e com boa qualidade. O conceito da dupla poda da videira é recente e permitiu um grande avanço qualitativo dos vinhos do sudeste brasileiro, que têm surpreendido consumidores e especialistas pela qualidade e o potencial reconhecido em diversos concursos internacionais da área enológica.
Produção de uvas viníferas durante o outono-inverno através do manejo da dupla poda
Com o objetivo de alterar a data da colheita, a técnica da dupla poda permite que o desenvolvimento e maturação da uva ocorram durante o outono-inverno, período mais favorável à obtenção de colheitas com índices satisfatórios de qualidade e sanidade. A partir dessa técnica tornou-se possível concentrar a produção dos cachos nos meses de junho a agosto, época em que ocorre brilho solar, noites frescas e solo mais seco devido à escassez de chuvas na região de cultivo (FAVERO et al., 2011; REGINA et al., 2011; DIAS et al., 2012).
No manejo dessa técnica, é realizada uma primeira poda de formação dos ramos em agosto, seguida da eliminação dos cachos. Estes ramos estarão maduros a partir de janeiro, quando uma nova poda é realizada, seguida de aplicação de cianamida hidrogenada para estimular a brotação. As temperaturas médias ambientais do verão, aliadas à existência de água em abundância no solo permitirão o relançamento de um novo ciclo vegetativo da videira, em que a maturação e colheita irão coincidir com os meses de maio a julho, época em que as condições são ideais à maturação e colheita das uvas para elaboração de vinhos de qualidade (Amorim et al, 2005; Favero et al., 2008; Regina et al., 2011).
A Figura 1 ilustra a evolução da temperatura média do ar, intensidade pluviométrica e o ciclo da videira ao longo dos meses do ano para o município de Três Corações, no Estado de Minas Gerais. Pode-se observar que o período chuvoso tem início no mês de outubro e se estende até o mês de abril, período acompanhado pela elevação da temperatura média. Nos meses de junho a agosto verifica-se queda da temperatura e grande redução das chuvas, atingindo volumes mínimos. A Figura 1 ilustra, também, o ciclo vegetativo normal da videira, com apenas uma poda e o ciclo invertido pela técnica da dupla poda. Pode-se observar que o período de colheita coincide com a época mais seca do ano aliada à ocorrência de dias ensolarados e noites frescas, o que favorece a produção de uvas sadias, com alto teor de sólidos solúveis e de polifenóis totais (AMORIM et. al., 2005; FAVERO et al., 2008).
A técnica da dupla poda com colheita de inverno tem se mostrado eficiente no Sul de Minas Gerais para cultivares de Vitis vinifera tintas e brancas, permitindo melhores índices de maturação em relação à safra de verão (MOTA et al., 2010). Das variedades testadas inicialmente, a que mais se adaptou a esta técnica foi a Syrah, que apresentou dados de produção e qualidade compatíveis com a produção comercial de vinhos finos, e superiores àqueles verificados para a mesma cultivar em ciclo de verão (REGINA et al., 2009).
Situada numa região tradicionalmente produtora de café, Três Corações é um dos municípios onde se iniciou o projeto de desenvolvimento vitícola sob o regime de dupla poda com a variedade Syrah. Seu primeiro vinhedo experimental foi instalado em 2001 e primeira colheita ocorreu em julho de 2003, a partir de uma parceria entre a EPAMIG e a Fazenda da Fé, dando origem a expressão “Vinhos de Inverno”. As vinificações experimentais revelaram um alto potencial qualitativo dos vinhos, estimulando a implantação de vinhedos comerciais já a partir do ano de 2004. Seu primeiro vinho foi lançado no mercado em 2013, sendo que, a partir de então, vários outros vinhedos foram instalados, todos eles empregando a técnica da dupla poda.
Favero et al. (2008), avaliando aspectos qualitativos das bagas e do vinho da videira Syrah cultivada em ciclo de verão e inverno em Três Corações, observaram que todos os parâmetros são superiores no ciclo de inverno, apresentando maior concentração de açúcares, menor acidez, maior teor de antocianinas e de polifenóis (Tabela 1). Devido à melhor qualidade da matéria-prima, o vinho de inverno também se mostrou superior ao de verão (Tabela 2).
Parâmetro | Ciclo de verão | Ciclo de inverno |
Comprimento do ciclo (dias) | 159 | 183 |
Fertilidade das gemas (cachos/ramo) | 0,86 | 1,33 |
Número de cachos por planta | 13,0 | 20,0 |
Peso médio do cacho (g) | 137,0 | 126,0 |
Produção (kg/planta) | 1,82 | 2,60 |
Produtividade estimada (t/ha) | 4,8 | 6,9 |
Peso da baga (g) | 2,16 | 1,48 |
Teor de sólidos solúveis (°Brix) | 16,6 | 21,3 |
Acidez total (meq/L) | 112,0 | 99,5 |
pH | 3,4 | 3,5 |
Antocianinas (mg malvidina/g casca) | 4,7 | 7,2 |
Fenólicos totais (mg ác.gálico/g casca) | 12,1 | 18,5 |
Fonte: Favero (2007)
Parâmetro | Verão | Inverno |
Álcool (% V/V) | 10,78 | 12,55 |
Acidez total (meq/L) | 86,7 | 82,62 |
Cinzas (g/L) | 1,93 | 2,97 |
Potássio (mg/L) | 960,7 | 1.504,9 |
Antocianinas (mg malvidina/L) | 41,09 | 150,76 |
Fenólicos totais (g ácido gálico/L) | 1,21 | 1,90 |
Intensidade de cor (I420 + I520 + I620) | 5,68 | 11,66 |
Fonte: Favero (2007)
Vinhos de inverno: situação atual e perspectivas
Atualmente, encontram-se implantados em torno de 152 hectares de vinhedos, em regime de dupla poda, distribuídos em diferentes municípios da região do Sudeste, concentrando-se nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, além de alguns vinhedos nas regiões de altitude do Centro-Oeste e Nordeste (Figura 2). A produção média apresentada por essas áreas é 740 toneladas anuais (Tabela 3).
Município/Estado | Área plantada(ha) | Produção(t) |
Três Corações (Minas Gerais) | 10 | 50 |
Três Pontas (Minas Gerais) | 15 | 75 |
Cordislândia (Minas Gerais) | 10 | 50 |
Esp. Santo do Pinhal (São Paulo) | 52 | 250 |
Itobi (São Paulo) | 15 | 75 |
Andradas (Minas Gerais) | 12 | 50 |
São Gonçalo do Sapucaí (Minas Gerais) | 10 | 50 |
São Bento do Sapucaí (São Paulo) | 8 | 40 |
São S. do Paraíso (Minas Gerais) | 5 | 25 |
Itaipava (Rio de Janeiro)Mucugé (Bahia) | 411 | 2055 |
Total | 152 | 740 |
Outros municípios, como Ribeirão Branco (São Paulo), Baependi (Minas Gerais), Patrocínio (Minas Gerais) e Ribeirão Preto (São Paulo), implantaram vinhedos recentemente, e viticultores já estabelecidos na região devem expandir sua área de produção nos próximos anos. São encontrados também vinhedos comerciais utilizando a técnica da dupla poda nos estados da Bahia e Goiás para produção de vinhos finos de inverno. Nestes lugares, como na maior parte das regiões do Sudeste, as chuvas encerram-se a partir de abril e as temperaturas do ar nesse período permitem a ocorrência de um novo ciclo da videira (TONIETTO et al., 2006).
O clima nas regiões vitícolas do sudeste brasileiro apresenta características de inverno seco, com dias ensolarados e noites de temperaturas amenas, e verão chuvoso, sendo que a altitude média onde se localiza a viticultura é de 900m acima do nível mar.
A busca pela otimização da produção e qualidade dos vinhos de inverno tem levado à execução de novos projetos de pesquisa, buscando introduzir novos cultivares, e ao mesmo tempo testar cultivares tradicionais em diferentes porta-enxertos que possam induzir melhor equilíbrio entre vegetação e produção em regime de dupla poda. Segundo Dias (2017), o uso de porta-enxertos mais vigorosos melhora a produtividade da videira Syrah e também induz uma composição fenólica suficiente, equilíbrio de acidez e álcool na bebida final.
Desde a implantação dos primeiros vinhedos, o vinho de inverno alcançou um avanço excepcional com aumento da área cultivada, número de produtores envolvidos e, principalmente, pela notoriedade dos vinhos produzidos. Diversos prêmios nacionais e internacionais têm sido conquistados e esse reconhecimento tem dado grande espaço ao potencial qualitativo desses vinhos nos diversos veículos de comunicação.
A exemplo do que ocorre nas demais regiões vinícolas do Brasil, tem-se buscado uma identidade regional para os vinhos produzidos no Sudeste do país. Em 2016 foi criada a Associação Nacional de Produtores de Vinhos de Inverno (ANPROVIN) com o objetivo principal de valorização do produto e criação de uma marca coletiva “Vinhos de Inverno” que servirá como base a uma futura Indicação de Procedência (IP), valorizando as tipicidades regionais e com o intuito de oferecer aos consumidores um produto diferenciado, de qualidade superior e contribuir para a vitivinicultura nacional.
Conclusões
O grande potencial enológico do sudeste brasileiro tem sido evidenciado pela qualidade dos vinhos produzidos. A técnica da dupla poda pode ser considerada como uma importante ferramenta para o desenvolvimento da vitivinicultura desta região. Diante disso, novas pesquisas se tornam importantes para a constante expansão de novos pólos vitivinícolas criando diversidade e tipicidade da produção e contribuindo para a qualidade dos vinhos nacionais.