Introdução
A vitivinicultura brasileira ganhou importância socioeconômica a partir da produção de vinhos na região da Serra Gaúcha, no Estado do Rio Grande do Sul, que teve início com a chegada da colonização italiana à região a partir de 1875.
A Figura 1 apresenta quatro períodos que marcam a evolução do desenvolvimento da vitivinicultura brasileira que, a partir da sua implantação, passou pela diversificação de produtos, incremento da qualidade, até chegar à fase atual que contempla a organização da produção através das indicações geográficas. Na fase atual, verifica-se a continuidade do movimento que teve início na década de 1980, no sentido da ampliação da produção de vinhos via novas regiões produtores do Brasil.
Foi somente em 1996 que o Brasil passou a ter uma legislação nacional que tornou possível o registro de indicações geográficas. Trata-se da Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996, que regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial (Brasil, 1996). A referida legislação diz, no Artigo 176, que constitui Indicação Geográfica a Indicação de Procedência ou a Denominação de Origem. No Artigo 177, a lei diz que se considera Indicação de Procedência o nome geográfico de país, cidade, região ou localidade de seu território, que se tenha tornado conhecido como centro de extração, produção ou fabricação de determinado produto ou de prestação de determinado serviço. No Artigo 178, a lei diz que se considera Denominação de Origem o nome geográfico de país, cidade, região ou localidade de seu território, que designe produto ou serviço cujas qualidades ou características se devam exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico, incluídos fatores naturais e humanos. O registro de Indicações Geográficas é competência do Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI. Atualmente a Instrução Normativa nº 25/2013, de 21.08.2013, do INPI, estabelece as condições para o registro das Indicações Geográficas (INPI, 2013).
Antes disso, já no início da década de 1990, a Embrapa Uva e Vinho fomentou, de forma pioneira no Brasil, o conceito das denominações de origem como uma opção para o desenvolvimento do setor vitivinícola brasileiro (Tonietto, 1993).
Em 1995 surgiu a primeira demanda do setor produtivo vitivinícola para a estruturação de uma indicação geográfica de vinhos, que se deu através da Associação dos Produtores de Vinhos Finos do Vale dos Vinhedos – Aprovale. O trabalho foi desenvolvido com a Aprovale (Falcade & Mandelli, 1999), resultou, em 2002, no registro da primeira indicação geográfica do Brasil - a Indicação de Procedência Vale dos Vinhedos, para vinhos finos tranquilos e espumantes.
O resultado positivo obtido no território da IP Vale dos Vinhedos estimulou o surgimento de novas demandas para a estruturação de indicações geográficas de vinhos, inicialmente na região tradicional produtora da Serra Gaúcha. A partir da década de 2010, outras regiões produtoras de vinhos passaram a demandar a estruturação de indicações geográficas, chegando até a região nordeste do Brasil, produtora dos vinhos tropicais.
Hoje o Brasil possui sete indicações geográficas de vinhos e mais de 50 indicações geográficas registradas para outros produtos, incluindo, entre outros, café, cachaça, frutas, carnes, queijo, cacau, mel, inhame, erva-mate. Existe grande potencial para estruturação e registro de inúmeras outras indicações geográficas de produtos no Brasil.
Este trabalho apresenta elementos do novo mapa dos vinhos de qualidade do Brasil que vem sendo redesenhado com o advento das indicações geográficas.
As Indicações Geográficas de Vinhos Brasileiros
Indicações Geográficas Registradas
Entre 2002 e 2015 foram registradas sete indicações geográficas brasileiras de vinhos, as quais tem sua gestão, incluindo o controle, a promoção e a proteção, exercido pelas respectivas associações de produtores (Tabela 1).
Seis das sete indicações geográficas de vinhos registradas localizam-se na tradicional região vitivinícola da Serra Gaúcha, no Estado do Rio Grande do Sul (Mapa 1 e Mapa 2). O Estado de Santa Catarina possui uma IG de vinhos localizada entre as encostas da Serra Geral e o litoral Sul Catarinense (Mapa 2).
A Tabela 2 mostra os tipos de vinhos autorizados no Regulamento de Uso em cada uma das indicações geográficas registradas. As indicações geográficas de vinhos do Brasil são estruturadas a partir da realidade histórica de cada território e, portanto, expressam as originalidades da produção dos vinhos de qualidade em cada IG. Por este motivo, os tipos de vinhos autorizados e os processos vitícolas e enológicos são distintos entre as diferentes indicações geográficas. Isto fica evidenciado, por exemplo, pelos tipos de vinhos autorizados na IP Farroupilha, que contempla exclusivamente produtos elaborados com uvas moscatéis, ou então na IP Vales da uva Goethe, cujos vinhos são elaborados exclusivamente com uvas da variedade Goethe. Também pode ser verificado nos tipos de vinhos da DO Vale dos Vinhedos que são bem específicos, apresentando qualidades e características determinadas pelos fatores naturais e fatores humanos do meio geográfico (Tabela 2).
Indicações Geográficas em Estruturação
Outros projetos de estruturação de indicações geográficas de vinhos estão em andamento, conforme pode ser visto na Tabela 3, que apresenta também as respectivas associações de produtores e a modalidade da IG. O Mapa 2 mostra a localização geográfica das indicações geográficas em estruturação.
A Campanha Gaúcha corresponde à delimitação de uma extensa área geográfica, localizada no Estado do Rio Grande do Sul, na região de fronteira com o Uruguai e Argentina. Segundo o Sistema CCM, apresenta clima vitícola quente, de noites temperadas e subúmido. A delimitação do Vale do São Francisco envolve parte dos estados da Bahia e Pernambuco, na qual são produzidos os chamados vinhos tropicais, onde, em função do clima tropical semiárido (com clima vitícola muito quente, de noites quentes e de seca moderada a subúmido, segundo o Sistema CCM), a produção de uvas para vinificação é programada pelo viticultor, podendo potencialmente ocorrer ao longo dos doze meses do ano. Altos de Pinto Bandeira (com clima vitícola temperado quente, de noites temperadas e úmido, segundo o Sistema CCM), localizada na Serra Gaúcha, no Rio Grande do Sul, que está sendo estruturada para a produção exclusiva de vinhos espumantes finos (produto renomado da Serra Gaúcha), pelo método tradicional, com características e qualidades que caracterizam uma denominação de origem. O Planalto Catarinense corresponde a uma IG dos chamados vinhos de altitude, localizada no Estado de Santa Catarina, em altitudes entre 900 e 1400 m, apresentando clima vitícola frio, de noites frias e úmido, segundo o Sistema CCM.
A Tabela 4 mostra os tipos de vinhos que serão autorizados nos Regulamentos de Uso de cada uma das indicações geográficas em fase de estruturação.
O Mapa 2 apresenta a localização aproximada das indicações geográficas de vinhos brasileiros registradas ou em fase de estruturação, as quais localizam-se nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Bahia e Pernambuco.
Maiores informações sobre as indicações geográficas de vinhos do Brasil podem ser obtidas no site da Embrapa Uva e Vinho (https://www.embrapa.br/uva-e-vinho/indicacoes-geograficas-de-vinhos-do-brasil ).
O Regulamento de Uso e os Controles nas Indicações Geográficas Brasileiras de Vinhos
O Regulamento de Uso
A Instrução Normativa do INPI, que estabelece as condições para o registro de indicação geográfica exige a apresentação do Regulamento de Uso da IG, seja ela uma IP ou uma DO. Contudo não especifica o que deve constar do documento.
A análise dos Regulamentos de Uso das indicações geográficas de vinhos do Brasil evidencia que o mesmo estabelece os requisitos a serem atendidos para que um vinho seja qualificado como produto de uma IG, incluindo as seguintes especificações (Tonietto, 2006; Tonietto et al., 2013a; Tonietto et al., 2013b; Tonietto et al., 2013c; Tonietto et al., 2016; Tonietto et al., 2017):
- O nome geográfico da IG;
- A descrição precisa da área geográfica delimitada;
- A relação de variedades autorizadas para a elaboração de cada tipo de vinho, incluindo, quando pertinente, os limites mínimos ou máximos de cada variedade na composição do vinho;
- A exigência quanto à produção da uva na área geográfica delimitada: entre 85 a 100% na IP e 100% na DO;
- O (s) sistema (s) de condução autorizado (s): em algumas IG são autorizados todos os sistemas utilizados na região; em outras, somente um sistema é autorizado;
- Os limites de produtividade máxima/hectare autorizados: estabelecido muitas vezes com limites diferenciados em função da variedade ou do tipo de vinho; pode incluir, entre outros, o limite de produção por planta;
- A qualidade da uva para vinificação: especificações normalmente associadas a teores mínimos de açúcares da uva na colheita ou ao potencial alcoólico natural mínimo ou máximo da uva para vinificação;
- O (s) tipo (s) de vinho (s) autorizado (s) na IG;
- As especificações sobre os sistemas de vinificação e práticas enológicas: obrigatoriedades ou proibições em relação ao estabelecido pela legislação nacional do vinho no Brasil ou especificações particulares da IG; pode incluir, entre outros, os tipos de recipientes autorizados, o tempo de envelhecimento para que o produto possa ser colocado no mercado;
- Especificações quanto à elaboração, maturação e engarrafamento dos vinhos na área geográfica delimitada: prioritária na DO e normalmente adotada nas IPs, podendo contemplar, na IP, autorização para processamento em zona de proximidade imediata, seja para algum tipo de vinho ou para alguma etapa do processo de elaboração de um tipo de vinho;
- Os padrões físico-químicos por tipo de vinho da IG quando os mesmos são mais restritivos do que os padrões estabelecidos pela legislação brasileira de vinhos, a qual é de cumprimento obrigatório;
- A avaliação sensorial dos vinhos da IG: a qual orienta sempre para produtos sem defeitos visuais, olfativos ou gustativos, podendo incluir qualidade diferencial; características da variedade nos vinhos varietais; atendimento aos referenciais de tipicidade e qualidade no caso de vinho com DO;
- Os padrões de rotulagem dos vinhos: uso do nome da IG, a modalidade da IG (IP ou DO) e o signo distintivo da IG, incluindo o selo de controle numerado em cada garrafa;
- A definição do Sistema de Controle e da instituição responsável pelo controle;
- Os principais elementos do Plano de Controle: principais pontos e métodos de controle.
O Sistema de Controle e o Plano de Controle
Além do Autocontrole, realizado pelos produtores de produtos com IG, cada IG possui, igualmente, um Controle Interno, estruturado para a verificação do atendimento dos requisitos estabelecidos no Regulamento de Uso, possibilitando a atestação da conformidade dos vinhos e a autorização para uso do signo distintivo da IG na rotulagem dos vinhos. Via-de-regra, o Plano de Controle é gerido pelo Conselho Regulador da associação de produtores da respectiva IG, que também atua na defesa e promoção da IG. O Conselho Regulador não somente atua com agente de controle, mas designa outros agentes de controle para auxiliar na operacionalização do Plano de Controle da IG.
Um estudo comparativo dos Regulamentos de Uso e Planos de Controle de Denominações de Origem de Vinhos do Brasil e da Itália (DO Vale dos Vinhedos, DOC Cortona e DOCG Franciacorta) mostra que os requisitos constantes nos Regulamentos de Uso utilizados para a qualificação dos vinhos, bem como os pontos de controle são assemelhados (Pereira et al., 2016), exemplificando que as indicações geográficas de vinhos do Brasil são estruturadas de forma assemelhada àquelas de países da Europa.
Estratégias Institucionais para a Estruturação de Indicações Geográficas de Vinhos no Brasil
As demandas dos produtores para a estruturação e registro de indicações geográficas de vinhos provêm das associações de produtores, como foi o caso das associações listadas nas Tabelas 1 e 3.
As indicações geográficas de vinhos finos brasileiros registradas tiveram seus projetos de estruturação coordenados e co-executados pelo Centro Nacional de Pesquisa de Uva e Vinho da Embrapa. Por ser uma instituição de pesquisa e desenvolvimento, a mesma tem inclusa na sua missão a implementação de ações dessa natureza, inclusive sendo facilitadora da mediação junto ao setor privado.
Por falta de especificações mais precisas para as IG de vinhos, mesmo que sem valor normativo obrigatório, um guia institucional de orientação foi concebido e adotado, o qual inclui igualmente as recomendações para os Regulamentos de Uso (Embrapa Uva e Vinho, 2014). Isto explica, ao menos em parte, porque as IG possuem uma certa uniformidade de conteúdo nos Regulamentos de Uso, contemplando um conjunto de requisitos importantes e valorizando as originalidades de cada IG.
A partir da existência de uma demanda para estruturação de uma indicação geográfica de vinho, os principais passos adotados pela Embrapa Uva e Vinho incluem:
- Realização de diagnóstico para avaliar o potencial existente para o desenvolvimento de um projeto de estruturação de uma IG, incluindo visitas de campo e reuniões com os produtores;
- Elaboração de projeto de PD&I para a estruturação da IG, visando a geração dos seguintes resultados: definição do Regulamento de Uso; elaboração do Plano de Controle; delimitação da área geográfica da IG; descrição dos fatores naturais (relevo, clima, geologia, solo) e dos fatores humanos do meio geográfico (cadastro vitícola georreferenciado, uso e cobertura do solo; caracterização do sistema de produção vitícola; caracterização do bioclima vitícola; descrição dos sistemas de vinificação e das práticas enológicas; descrição da infraestrutura e socioeconômica da produção vitícola e enológica; caracterização físico-química e sensorial dos vinhos; adequação estatutária da associação de produtores para assumir as funções de gestão da IF (controle, defesa e promoção); caracterização da paisagem vitícola; levantamento do potencial enoturístico da região; comprovação do renome da região na produção dos vinhos da IG).
Os resultados obtidos são utilizados para a elaboração das notas técnicas com os elementos necessários para instruir o processo de pedido de registro da IG junto ao INPI.
Os projetos de PD&I são formulados articulando a participação de equipes multidisciplinares e multi-institucionais público-privados, envolvendo obrigatoriamente os produtores interessados na estruturação da IG e buscando a participação das instituições de apoio que podem contribuir para o atingimento dos resultados do projeto.
Diversas instituições de apoio ao desenvolvimento tem cooperado, ao longo dos anos, nos diversos projetos de PD&I executados para atender as demandas das associações de produtores visando a estruturação das indicações geográficas de vinhos, incluindo: Embrapa (Uva e Vinho, Clima Temperado, Semiárido, Florestas), Universidade de Caxias do Sul – UCS, Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Unipampa, Sebrae, Epagri, Ibravin, Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - MAPA, Ministério da Ciência e Tecnologia, Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI, além de instituições de fomento ao desenvolvimento, como a Finep, Fapergs, CNPq e instituições de amparo à pesquisa, como a Fapeg e a Fagro. Instituições internacionais também apoiam os projetos, como é o caso da Chaire UNESCO “Cultura e Tradições do Vinho”, sediada na Universidade da Bourgogne, que apoia em particular os aspectos de valorização da vitivinicultura como patrimônio cultural.
Mais recentemente, para subsidiar a estruturação de indicações geográficas para produtos no Brasil, existem orientações na norma brasileira 16536, editada pela ABNT (2016). Embora a mesma não seja de uso obrigatório nem específica para o produto vinho, a norma contempla informações relevantes para qualificar as indicações geográficas de vinhos.
Tendências e Perspectivas
Com o advento de mais de dez indicações geográficas de vinhos, já registradas ou em fase de estruturação, 2016 ficou marcado pela criação do Comitê de Indicações Geográficas junto ao Instituto Brasileiro do Vinho – Ibravin, que passou a atuar como estimulador das políticas de fomento às indicações geográficas de vinhos. Esta nova etapa marca a inserção das indicações geográficas como instrumento de política do setor vitivinícola.
Se hoje o volume de vinhos com indicação geográfica ainda é pequeno, a visibilidade que as indicações geográficas têm conferido aos respectivos territórios e vinhos é expressiva. O registro de novas indicações geográficas nas principais regiões produtoras do Brasil deverá gerar uma nova etapa de afirmação da identidade da vitivinicultura brasileira, importante para estimular o mercado interno e abrindo possibilidades de maior visibilidade internacional.
Vale também destacar que as indicações geográficas de vinhos, além de organizarem a produção e criarem mecanismos de promoção e proteção junto ao mercado, abrem novas vertentes para evidenciar os valores materiais e imateriais dos territórios do vinho, estimulando o enoturismo, a valorização da paisagem vitícola e a preservação do patrimônio cultural da vitivinicultura brasileira.