Introdução
A transformação digital é um processo que se acelerou após a pandemia sanitária causada pela COVID-19 e vem afetando todos os setores e a sociedade de forma mais ampla, trazendo oportunidades e desafios. A utilização de tecnologias como a inteligência artificial, blockchain, automação ou IoT pode ser um importante vetor de competitividade num mercado cada vez mais globalizado, com um consumidor exigente e em mudança, mas que tem preços estáveis e produção crescente, ou seja, concorrência crescente1. A inovação é importante para o crescimento da indústria e competitividade. A atual situação sanitária torna mais urgente encontrar formas mais inovadoras de apoiar o avanço da indústria vitivinícola, hoje em dia, limitada apenas à promoção de produtos e serviços das empresas vitivinícolas2.
Do ponto de vista das operações, as ferramentas digitais podem contribuir desde a organização de processos até um maior controle das operações de produção e logística. As tecnologias permitem maior acesso aos dados na tomada de decisão, em um processo conhecido como data-driven. Neste contexto, as plataformas digitais estão entre as pílulas da transformação digital3.
A evolução do controle de qualidade pode ser citada nos programas de Boas Práticas de Fabricação (BPF’s), no APPCC (Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle) e na certificação ISO2000, BRC (British Retail Consortium) e IFS (International Featured Standards). A BRC e a IFS fazem parte da GFSI (Global Food Safety Initiative), que é uma iniciativa global sem fins lucrativos que visa apoiar sistemas de gestão de segurança4.
Os padrões dos programas de segurança alimentar que fazem parte da iniciativa GFSI mudaram ao longo do tempo, incluindo a adoção de medidas de desenvolvimento contínuo para prevenir a infeção intencional na cadeia de produção5. A necessidade de fornecer aos consumidores produtos mais seguros que satisfaçam as exigências de um mercado globalizado inclui a produção de bebidas, com base em medidas preventivas no processo de fabricação6. É evidente que o mercado nacional e internacional de alimentos e bebidas vem exigindo cada vez mais controle de qualidade e consequente rastreabilidade das matérias-primas utilizadas em seus processos produtivos.
A transformação digital pode também contribuir em termos de controle de qualidade, segurança alimentar e sustentabilidade ambiental. A rastreabilidade do sistema alimentar, por exemplo, pode ser melhorada utilizando métodos baseados na análise de big data7, enquanto a tecnologia blockchain pode contribuir para a certificação da sustentabilidade do vinho em termos de fiabilidade da rastreabilidade ao longo da cadeia de abastecimento8.
Embora as ferramentas digitais tenham um enorme potencial, há um relativo consenso de que a transformação digital deve fazer parte de uma estratégia de negócios mais ampla, alinhada com as prioridades competitivas9. Nesse contexto, a segurança e a qualidade dos alimentos são exigências atuais dos consumidores e mercados, o que acaba se refletindo no setor vitivinícola e em toda a sua cadeia. No entanto, eles podem representar desafios operacionais, especialmente para pequenas ou médias vinícolas.
A viticultura é uma importante fonte de renda em diversas regiões brasileiras, sendo que nelas existem propriedades vitícolas de pequeno, médio e grande porte, e essa atividade tem contribuído para a sustentabilidade da viticultura na geração de emprego e renda. A principal área brasileira com concentração de videiras é a região Sul, representando 73,12 % da área brasileira em 2020. Nessa região, o Rio Grande do Sul é o principal estado produtor, com 62,51 % da área nacional. Esses dados podem ser confirmados na figura 1. Das uvas destinadas à transformação, o maior volume destina-se à produção de sucos e vinhos de mesa e finos10. Segundo o IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 2021 foram 1.748.197 toneladas de uva no país, em 75.622 hectares. Sendo o Rio Grande do Sul (RS) o maior produtor, com 951.254 toneladas, em 46.295 hectares. No RS foram 2023 propriedades de produção de uvaem 201711.
Com base nesta questão, este trabalho tem como objetivo desenvolver a rastreabilidade da uva utilizada na produção de vinhos apoiada pela tecnologia da informação em uma vinícola situada em Garibaldi, RS, Brasil. De forma mais abrangente, o estudo visa contribuir para trazer padrões internacionais de segurança e qualidade de alimentos para o contexto brasileiro e subsidiar profissionais e vinícolas no desenvolvimento de estratégias para a implementação de sistemas de rastreabilidade.
Rastreabilidade e qualidade nas indústrias vinícolas brasileiras
Estudos atuais demonstram que os compradores internacionais estão impondo condições mais rígidas aos fornecedores da cadeia de suprimentos, com padrões mais exigentes do que os do próprio país. A implementação de um sistema de rastreabilidade é um destes requisitos, uma vez que é um fator significativo para a obtenção de alimentos seguros e saudáveis12.
Sendo a uva a principal matéria-prima para a produção do vinho, o seu controle de produção é indispensável para controlar a rastreabilidade dos produtos e a sua consequente entrada em novos mercados. Nesse sentido, a produção agrícola, quando conduzida sob as condições higiênicas necessárias, reduz a possibilidade de perigos que possam afetar as condições de higiene e segurança da produção e seus derivados13.
Globalmente, até hoje, as estruturas de rastreabilidade desenvolvidas para o vinho são em sua maioria para vinhos produzidos em regiões com denominações protegidas, ou ainda, para controlar metais pesados e resíduos de pesticidas. Para a OIV – International Organization of Vine and Wine (2020), a implementação de sistemas de segurança alimentar no sistema de gestão, indo além dos padrões sanitários, é uma forma de garantir e expandir para a viticultura sustentável, com a rastreabilidade entre as ferramentas para isso14.
A indústria vitivinícola apresentou um caminho de crescimento para uma melhor implementação de práticas sustentáveis no processo global de produção e distribuição. Assim, a indústria do vinho possui um elevado número de programas de sustentabilidade, processos de certificação e padrões de sustentabilidade15.
Geralmente, os programas de sustentabilidade do vinho são promovidos por governos ou por associações da indústria do vinho. É necessário seguir uma legislação específica para certificar que o vinho ou vinícola está em conformidade com o padrão de sustentabilidade. A certificação só vem após a verificação da conformidade com as especificações técnicas do programa16.
No Brasil, a produção de vinhos e bebidas é fiscalizada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), por meio da lei nº 7678, de 8 de novembro de 1988, e complementada por Padrões de Identidade e Qualidade – PIQs estabelecidos em Instruções Normativas específicas17. Há registros de todos os movimentos da uva e do vinho dentro da vinícola, mas não há uma ferramenta rápida de rastreabilidade para os produtos que estão no mercado.
Materiais e métodos
O projeto está sendo desenvolvido em uma vinícola brasileira de médio porte, localizada em Garibaldi – Rio Grande do Sul e a produção da uva ocorre em vinhedos próprios e com parceiros.
Planejamento da estrutura de rastreabilidade da uva
Os processos reconhecidos na cadeia de abastecimento do vinho vão desde a colheita das uvas no campo até à distribuição dos produtos finais. Foi necessário reconhecer o processo e os riscos em cada etapa, através da revisão da análise de risco de matéria-prima existente na adega, e de acordo com: processo de gestão de matérias-primas vitivinícolas (colheita e recebimento dos produtos vitivinícolas), gestão da produção de vinho (produção do mosto ao engarrafamento e embalagem), processo de gestão da ordem do vinho (preparação dos produtos acabados e execução das encomendas) e processo de distribuição do vinho18.
Essas verificações estão descritas em PIQs, procedimentos do sistema integrado de gestão e APPCC (análise de perigos e pontos críticos de controle).
Sistema de informação e controle de lotes
Todos os tratamentos e demais manejos da videira foram registrados na implantação do software Demetra, desenvolvido pela empresa Elysios. Esta é uma plataforma de gestão que integra o produtor de uva com a equipe técnica da empresa. No caso dos produtores parceiros de uva, os registros eram feitos na safra e posteriormente adicionados ao software. Todas essas informações de dados foram salvas e vinculadas à avaliação da qualidade do recebimento da uva e à planilha de rastreabilidade dos tanques. Todas as planilhas finais são finalizadas quando ocorre o engarrafamento do vinho. E neste momento, um novo código de engarrafamento é criado, que é chamado de controle de lote. Com esse código é possível descobrir qual foi o vinhedo do produto em situações de recall.
Análise de viabilidade
A certificação internacional de qualidade é um processo que exige investimentos que precisam ser justificados em uma empresa. Então, durante esse projeto, isso foi verificado por direção com a equipe técnica e de qualidade.
A metodologia utilizada foi o Stage Gate (figura 2), uma ferramenta para criação de negócios de valor, para transformar de forma rápida e lucrativa novas ideias em novos produtos19. Os critérios considerados neste trabalho foram descritos por Cooper, 1990: gravidade da demanda, grau de inovação, viabilidade e alinhamento estratégico20.
Resultados e produtos
Os resultados obtidos até o momento estão apresentados nas figuras 3 e 4.
A partir do Software Demetra, foi possível registrar 14 vinhedos, com 9,4 hectares. Também foram registradas as variedades Merlot, Lorena, Lambrusco, Chardonnay, Glera, Moscato Branco, Moscato Giallo e Pinot Noir. Da mesma forma, registros de tratamentos e manejos realizados durante o ano nos vinhedos também foram armazenados.
A posteriori, ocorrerá a determinação de padrões de condições fitossanitárias das uvas na entrada na vinícola a fim de estabelecer o cumprimento dos requisitos de qualidade. Os registros serão feitos em folhas específicas contendo as condições no momento da matéria-prima. Por fim, será criada uma planilha para controlar o número de uvas recebidas em desconformidade com as normas estabelecidas. A partir desses dados, serão criados registros dos lotes de produtos acabados produzidos anualmente, a fim de preencher o sistema de gestão da produção com códigos criados e registrados nos produtos a cada engarrafamento. Após a implementação desses procedimentos, o processo de integração entre todos os processos deve ocorrer entre os responsáveis por cada atividade da empresa para que os dados sejam sincronizados.
Como última etapa, será verificada a viabilidade da certificação em um protocolo internacional por meio do processo Stage-Gate21, conforme tabela 1, com algumas modificações.
Tabela 1. Atividades realizadas em cada estágio do Stage Gate.
St. | Tópico | Como |
1 | Planejamento de Certificação Internacional | Certificação internacional de qualidade que os clientes exigem. |
2 | Levantamento de necessidades | PIQs, procedimento operacional padrão e APPCC. |
3 | Definição do tipo de certificação | São 3 opções de certificação (IFS Food, BRC e FSSC22000). Todas as estruturas de certificação devem ser estudadas para analisar qual é a melhor opção para a vinícola. |
4 | Custos e clientes | Direção e equipe técnica listaram os custos envolvidos na certificação. Junto com isso, a equipe comercial listou o faturamento com os clientes e já tem a demanda de controle de qualidade. Foram listados novos possíveis clientes para o futuro. |
5 | Preços de produtos | Com os custos calculados, um novo preço do vinho foi definido e proposto aos clientes reais. Esse valor foi aceito por eles. |
O desafio aplicado a este projeto diz respeito à certificação com programas de qualidade, uma vez que não é comum vinícolas terem certificação no sistema integrado de gestão.
Tabela 2. Oportunidades e barreiras.
Oportunidades | Barreiras |
Implementar rastreabilidade QRcode Trabalhe com viticultura de precisão Desfiladeiro do mercado | Baixa confiabilidade das informações dos produtores Falha nos registros digitais Falha na comunicação da equipe |
Uma boa sugestão é implementar uma rastreabilidade QRcode em cada produto, como em outros alimentos e bebidas. Da mesma forma, este código pode ser associado a videiras que já têm agricultura de precisão.
Esse perfil é endossado pela legislação, que é proposta para aplicação na indústria alimentícia, e não nas indústrias vitivinícolas em geral.
Durante o processo, alguns erros podem ter ocorrido, conforme barreiras descritas na tabela 2.
Conclusão
Atingido o objetivo, o vinho brasileiro ganha maior credibilidade e consequente crescimento no mercado e na demanda. O setor vitivinícola local se fortalece, desde pequenos produtores de uvas até grandes produtores de vinho e espumante. Com um sistema de rastreabilidade da uva em vigor, a vinícola precisará ser mais cuidadosa na seleção de fornecedores de uva, os produtores de uva precisarão ter mais cuidado no cultivo e, portanto, haverá mais segurança oferecida aos consumidores finais.
Esse sistema de gestão e qualidade de média complexidade pode ser utilizado em qualquer empresa que produza bebidas derivadas de uvas, ou seja, qualquer vinícola ou empresa que produza vinhos, espumantes e sucos. inovação para o setor. O protocolo que foi criado neste projeto é uma ferramenta que pode ser utilizada por vinícolas de pequeno e médio porte. É uma boa maneira de iniciar o trabalho de rastreabilidade e pode ajudar no crescimento do controle de qualidade da produção de vinho.