A região dos "Vinhos da Campanha" e suas perspectivas de sustentabilidade

  • The “Vinhos da Campanha” Wine Region and its Prospects for Sustainability
Translation(s):
La région des « Vins de la Campanha » et ses perspectives de durabilité

Abstracts

O artigo traz uma visão geral sobre a região vitivinícola da Campanha, situada no estado do Rio Grande do Sul, ao longo da fronteira com o Uruguai, e analisa suas perspectivas de sustentabilidade, a partir de um estudo que contou com uma análise de protocolos de vitiviniculturas sustentável em seis países, complementado por duas fases de trabalhos de campo e observações na região. Apesar de antecedentes históricos remontando ao século XVI, a trajetória moderna da vitivinicultura na Campanha se inicia na década de 1980, com expansão nos anos 2000 e organização do processo para reconhecimento da Indicação Geográfica a partir de 2010. Hoje a região conta com estrutura institucional, o que inclui associações locais para vitivinicultura, iniciativas de enoturismo e presença de instituições de ensino e pesquisa trabalhando o tema da vitivinicultura. Em termos de sustentabilidade, foi analisada a dimensão ambiental, apesar de a pesquisa original tratar o tema em escopo amplo. É analisada a percepção dos vitivinicultores sobre os temas da sustentabilidade e vitivinicultura sustentável, assim como as práticas atuais. Foram identificadas diversas iniciativas, sobretudo nos temas água, ar, efluentes, resíduos sólidos, biodiversidade, energia e práticas agrícolas, o que mostra o potencial da Campanha para formalizar um programa de vitivinicultura sustentável.

The paper presents an overview of the Campanha wine region, located in the state of Rio Grande do Sul, along the borderline with Uruguay, and analyzes its perspectives of sustainability, based on a study that considers wine sustainability frameworks in six countries, complemented by two phases of field work and observations in the region. Although historical antecedents go back to the XVIth century, the modern trajectory of viticulture in the Campanha have begun in the 1980s, with the expansion in the years 2000 and the organization of the Geographical Indication recognition process in 2010. Today the region has an institutional structure, which includes local wine associations, wine tourism initiatives and the presence of learning and research institutions working on the theme of wine. In terms of sustainability, the environmental dimension was analyzed, although the original research treats the theme in a broad scope. The perception of winemakers on the themes of sustainability and sustainable viticulture, as well as on the current practices, is analyzed. Several initiatives have been identified, especially in the areas of water, air, effluents, solid waste, biodiversity, energy and agricultural practices, which show the potential of Campanha to formalize a sustainable viticulture program.

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Text

Introdução

A viticultura no Brasil foi introduzida por portugueses e espanhóis já no século XVI. A iniciativa pioneira é creditada à Martim Afonso de Souza no sudeste, na época da Capitania de São Vicente, em 1532. No mesmo período, também há registros de experiências no Sul e Nordeste do país (SOUSA, 1969). Todas essas iniciativas, contudo, não atingiram representatividade que permitisse configurar uma região com identidade vitivinícola. A real consolidação da vitivinicultura no país se iniciou com a chegada dos imigrantes no século XIX, em especial os alemães, mais tarde, os italianos, a partir de 1875, responsáveis pelo grande impulso da vitivinicultura no Brasil (FALCADE, 2011). A Serra Gaúcha é o maior e mais importante vinhedo do Brasil, com aproximadamente 85% da produção nacional de vinhos (IBRAVIN, 2013), compondo um arranjo produtivo e institucional que engloba cerca de 670 estabelecimentos e gera 3.300 empregos (MDIC, 2015), instituições de ensino e pesquisa voltadas para a área, além de associações profissionais. O desenvolvimento da vitivinicultura na Serra Gaúcha foi fortemente marcado pela imigração italiana, a partir de 1875. Além de ser a principal região vitivinícola em extensão e produção, a Serra Gaúcha tem uma importante influência sobre as demais regiões do Brasil, seja pela presença de vinícolas e profissionais, ou como referência em processos (FLORES et al., 2014).

O vinhedo emergente tratado no presente artigo foi constituído em outras bases, parte de uma expansão mais recente, que ocorreu tanto no Sul, como no Nordeste do país, precisamente, a partir da década de 1980, em uma convergência de investimentos estrangeiros, iniciativas locais e investimentos de vinícolas da Serra Gaúcha, que expandiram suas áreas de produção. Hoje, regiões como a Campanha e o Vale do São Francisco contam com vinhedos, vinícolas, associações setoriais, instituições de ensino e pesquisa na área, iniciativas de enoturismo, além de projetos em curso para Indicação Geográfica, em um movimento para sua consolidação, que se intensificou a partir de 2010 (FLORES, 2015). A região da Campanha está localizada na Metade Sul do estado do Rio Grande do Sul, ao longo da fronteira do Brasil com o Uruguai, como pode ser visto no Mapa 1.

Mapa 1.Região vitivinícola da Campanha, Rio Grande do Sul.

Mapa 1.Região vitivinícola da Campanha, Rio Grande do
          Sul.

O processo de colonização da Campanha foi marcado por conflitos e disputas territoriais entre portugueses e espanhóis, durante o século XIX, palco para formação de um novo tipo social, o “gaúcho”, que se configura como mito de fundação da identidade do Rio Grande do Sul. O “gaúcho” representa uma miscigenação, com influência étnica castelhana, charrua (indígena) e portuguesa; é identificado com a região de fronteira e ligado à atividade pastoril e à estância, com uma forma bucólica de descrição da paisagem, destacando o pampa, a coxilha e o minuano1 (HEIDRICH, 2000). Com relação à produção vitivinícola, estudos apontam para áreas pontuais, com os jesuítas, no século XVII, e com os portugueses, no século XVIII (SOUSA, 1969), mas que não chegaram a formar uma identidade territorial. Já no final do século XIX, o desenvolvimento dos vinhedos no Uruguai teria sido o responsável por levar a viticultura para a Campanha, como uma consequência posterior da imigração espanhola; um dos vinhedos mais expressivos era Uruguaiana, com registros de produção de uvas e vinhos, que eram consumidos na região, a partir de 1887 (PIZZOL; SOUZA, 2014).

Considerando o processo de formação do território, a Campanha possui um perfil produtivo historicamente vinculado à pecuária extensiva e à rizicultura, ligado a grandes propriedades e à concentração da produção. Essa estrutura é uma herança direta e acaba por refletir a própria colonização da região da fronteira, marcada por uma ocupação militar, na origem das “estâncias” (PESAVENTO, 1985). Assim, apesar dos antecedentes acima relatados, a cultura da uva e do vinho não é parte da formação da identidade desse território, nem em termos produtivos, nem em termos culturais. Trata-se de um elemento externo, integrado a partir dos anos 1980, que vem fortalecendo a sua presença e passando a fazer parte do cotidiano da região.

Do ponto de vista técnico, o potencial da região para culturas europeias já havia sido constatado pelo botânico francês Saint-Hilaire, em sua viagem pelo Estado, entre 1820 e 1821. Durante a década de 1970, estudos liderados pelo professor Harold Olmos, da Universidade de Davis (EUA), com a participação da Universidade Federal de Pelotas e da Secretaria da Agricultura do RS, identificaram a região da Campanha como a mais favorável para a produção de viníferas, devido as suas características edafoclimáticas. A pesquisa foi iniciada em 1974 e retomada em 1976, com observações mais prolongadas, conforme relatado por Mota (1992). Fatores edafoclimáticos qualificam a aptidão da região da Campanha, com destaque para, continentalidade e atmosfera límpida, decorrente da baixa umidade relativa do ar, que determinam maior amplitude térmica diária, verões de alta insolação, aliado a baixa precipitação no período de maturação da uva, favorecendo fotossíntese líquida, o que resulta em maior teor de açúcar no fruto (MOTA, 1992). Outro ponto a ressaltar é a declividade de, no máximo, 15%, favorecendo a mecanização. Todos esses fatores acabaram por dar suporte aos investimentos iniciados na década de 1980, com forte expansão a partir dos anos 2000, de modo a constituir uma região vitivinícola reconhecida e com identidade territorial.

Abordar sustentabilidade é tocar em um tema complexo, que envolve múltiplos usos e problemáticas da escala local à global, sendo pauta de diversas indústrias e setores da sociedade. No mundo dos vinhos, assim como a indústria acaba sendo afetada por problemáticas relativas à sustentabilidade, como os eventos relacionados às mudanças climáticas, a busca por qualidade e competitividade acaba por posicionar os vinhedos como um cultivo de alto impacto. A sustentabilidade na vitivinicultura também vem sendo tema debatido na OIV e conta com diversos documentos de suporte e escopo amplo incluindo aspectos físicos, ambientais, econômicos, sociais e imateriais (OIV, 2004, 2008, 2016). Para a OIV, vitivinicultura sustentável é:

[...] abordagem global na escala de sistemas de produção e processamento de uvas, que combina tanto a sustentabilidade econômica das estruturas e dos territórios, a obtenção de produtos de qualidade, tendo em conta as exigências da viticultura de precisão, os riscos relacionados ao ambiente, à segurança do produto e à saúde dos consumidores e a valorização dos aspectos patrimoniais, históricos, culturais, ecológicos e paisagísticos.

(OIV, 2004, 2008)

Paralelo a isso, países produtores tradicionais, como a França e Suiça, e também os vinhos de “Novo Mundo”, Austrália, Nova Zelândia, Califórnia (EUA) e o Chile, vêm articulando programas e ações em nível regional ou nacional, que podem assumir a forma de auto-avaliação, certificação, selo (ou label) ou pegada (CORBO; LAMASTRA; CAPRI, 2014; FLORES; MEDEIROS, 2016; PIEROT; ROCHARD, 2013; PRATT, 2012; SANTIAGO-BROWN et al., 2014). No caso do Brasil, o país é considerado referência em diversas áreas com relação à gestão ambiental e ao debate envolvendo sustentabilidade e suas macroquestões, mas ainda possui lacunas com relação à indústria vitivinícola. Nesse sentido, a região da Campanha se apresenta como potencial para abordar o tema da sustentabilidade na vitivinicultura brasileira, seja pelas suas características edafoclimáticas, ações em curso, motivação dos atores locais ou ainda por ser um vinhedo relativamente jovem e em expansão, propício para a adoção de novas práticas.

A presente pesquisa foi realizada no período entre 2012 e 2015 (incorporando também banco de dados de trabalhos a partir de 2009) e fez parte da tese intitulada “vitivinicultura sustentável no Brasil: uma proposta de abordagem”, realizada em co-tutela entre a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a Université de Bourgogne (UB), com o apoio da Chaire-UNESCO “Culture et Tradition du Vin”. O estudo contou com uma análise de protocolos de vitivinicultura sustentável em 6 países, complementado por duas fases de trabalhos de campo e observações nas regiões da Campanha e Vale do São Francisco.

O objetivo desse artigo é trazer uma visão geral sobre a região da Campanha e suas perspectivas de sustentabilidade, incluindo antecedentes, estrutura de produção, percurso dos atores e percepção com relação à região. O levantamento de dados e análise na região foi baseado em revisão de literatura, pesquisa documental e entrevista com atores locais, incluindo viticultores, vinícolas e instituições de apoio. A análise das perspectivas de sustentabilidade levou em conta o levantamento de dados dos protocolos internacionais, assim como entrevista com experts, buscando as melhores práticas na área e identificando o que já está em curso e pode ser implantado na região da Campanha. Os resultados foram expressos com apoio de cartografia temática e mapas conceituais, que serão apresentados ao longo do texto. Assim, o artigo se inicia com uma análise da trajetória e estrutura atual do vinhedo da Campanha, passa pela análise das principais práticas identificadas na região alinhadas ao tema da vitivinicultura sustentável para destacar, por fim, os potenciais de desenvolvimento desse vinhedo emergente e suas perspectivas de sustentabilidade.

Campanha: desenvolvimento e estrutura de um vinhedo emergente

Trajetória contemporânea da região vitivinícola

A trajetória moderna da vitivinicultura na Campanha pode ser dividida em quatro fases: 1) implantação, a partir dos anos 1980; 2) expansão, que teve início nos anos 2000; 3) acomodação, a partir de 2007; e, 4) nova expansão e organização da região para o processo de reconhecimento da Indicação Geográfica, a partir de 2010 (Flores, 2015). A Figura 1 retrata a evolução na área plantada e o número de propriedades, destacando as quatro fases.

Figura 1. Evolução da vitivinicultura na Campanha.

Figura 1. Evolução da vitivinicultura na Campanha.

Como já ressaltado, a Implantação moderna da vitivinicultura na Campanha, foi motivada pelas condições edafoclimáticas, identificadas nas pesquisas acima retratadas, a partir do investimento de corporações do ramo. A pioneira foi a vinícola Almadén, projeto de uma multinacional norte-americana, iniciado na década de 1970, com elaboração do primeiro vinho, nos anos 1980, no município de Santana do Livramento (vinhedos inicialmente instalados em Bagé). O projeto da Almadén foi seguido pela implementação da Livramento Vinícola, iniciativa de um grupo japonês, cuja produção tinha como destino principal as exportações para o país sede. Tais companhias implantam larga escala de produção, sistemas de cultivo diferenciado, com adegas, tanques e equipamentos modernos (FLORES, 2011) e protagonizaram um perfil de investimentos diferente dos realizados no tradicional eixo da Serra Gaúcha.

Apesar dos empreendimentos considerados de grande porte, a Expansão da cultura, que marca a segunda fase, ocorreu quando os vinhedos transpuseram as fronteiras da chamada “vitivinicultura corporativa”2 e passaram a contar com a participação de produtores da região. Esse processo desenvolveu-se a partir do ano 2000, motivado pelos atrativos preços, pagos para aquisição das uvas de Vitis vinifera. Os novos atores dividiam-se em duas categorias principais: os “novos empreendedores” e os “produtores independentes”. Os “novos empreendedores” são produtores da região que já iniciaram um projeto integrado de produção e vinificação, buscando lançar marcas próprias de vinhos. Em todos os casos, possuem outra atividade principal, sendo que a vitivinicultura aparece como diversificação e as famílias estão envolvidas no processo. Já os “produtores independentes” contemplam agricultores que iniciaram o cultivo visando ao fornecimento de uva, sobretudo para vinícolas da Serra Gaúcha. Em muitos casos, os projetos tiveram início e suporte fomentado pelas futuras compradoras (FLORES, 2011; FLORES; MEDEIROS, 2010, 2013).

A segunda fase também marcou o início de uma atuação mais direta de vinícolas da Serra Gaúcha na região da Campanha, primeiramente, através de aquisição dos projetos estrangeiros. O período também contou com a expansão da cultura para outros municípios da Campanha. É importante observar que, mesmo falando de uma pulverização, saindo de grandes corporações para a agricultura familiar, o modelo difere significativamente da Serra Gaúcha, sobretudo considerando a concentração da produção e o tamanho das propriedades - enquanto, no Estado, 80% das propriedades possuem superfície em vinhedo inferior a 4ha, na Campanha, esse número cai para menos de 40%.

A partir de 2007, contudo, a região passa por um processo de Acomodação, mas sem que isso signifique, necessariamente, uma ruptura. O período traz à tona dificuldades, sobretudo para os que haviam iniciado o cultivo nessa década, no que concerne à comercialização e à produção, devido a perdas representativas na safra de 2009-2010 (FLORES, 2011). Tais fatores implicam em uma acomodação da produção, inclusive, pode ser identificada uma pequena retração, já que alguns desses produtores acabaram abandonando a cultura. A queda no número de propriedades, no entanto, não foi acompanhada, na mesma medida, pela redução na área plantada. Isso indica a continuidade, ou até uma expansão, para a maioria dos produtores.

O quarto período inicia-se por volta de 2010 e traz como característica uma Nova expansão, decorrente da intensificação do movimento Serra Gaúcha-Campanha, aliada à Organização institucional da vitivinicultura da região. O movimento Serra Gaúcha-Campanha se dá com o ingresso ou o fortalecimento da presença das grandes vinícolas da Serra Gaúcha na região, seja com projetos próprios, ou através do fomento de produtores locais. Tal movimento é decorrente de uma expansão das atividades das vinícolas da Serra Gaúcha, que, por estarem em uma região já muito densa e com terras valorizadas, acabam por direcionar seus investimentos para outras regiões, com destaque para a Campanha.

Além disso, outra grande contribuição do período se dá na organização institucional. Nos municípios, estão presentes associações locais de produtores, que podem ser relacionadas à fruticultura ou diretamente à vitivinicultura e reúnem viticultores da categoria produtores independentes (FLORES, 2011). Em nível regional, a Associação dos Produtores de Vinhos Finos da Campanha Gaúcha reúne as vinícolas e também está aberta para ingresso de produtores independentes, através das associações municipais. A associação dos Vinhos da Campanha Gaúcha foi constituída em abril de 2010 e tem desempenhado papel central para a organização e a projeção da região, na medida em que constitui instância representativa dos atores locais. Dentre as ações que a Associação vem desenvolvendo, destacam-se o processo da Indicação Geográfica (IG) e a promoção da região. O processo para IG já foi protocolado junto às autoridades brasileiras e a Indicação de Procedência da Campanha Gaúcha pode ser reconhecida ainda em 2018.

Estrutura de produção atual

Os mapas a seguir retratam o perfil da Campanha Gaúcha, com relação aos seus vinhedos (Mapa 2 e 3; Figura 2), além da organização da estrutura, que inclui produção, enoturismo e instituições de educação e pesquisa (Mapa 4).

Mapa 2. Campanha (RS): área dos vinhedos e perfil das variedades (2012).

Mapa 2. Campanha (RS): área dos vinhedos e perfil das
            variedades (2012).

Mapa 3. Campanha (RS): número de propriedades com vinhedos e finalidade da produção vitícola (2012).

Mapa 3. Campanha (RS): número de propriedades com vinhedos e
            finalidade da produção vitícola (2012).

Figura 2. Campanha Gaúcha: perfil dos cultivares, 2012.

Figura 2. Campanha Gaúcha: perfil dos cultivares,
            2012.

Mapa 4. Campanha Gaúcha: estrutura de produção e principais instituições de ensino e pesquisa na região e arredores.

Mapa 4. Campanha Gaúcha: estrutura de produção e principais
            instituições de ensino e pesquisa na região e arredores.

Como pode ser visto no Mapa 2, a produção está concentrada nos municípios de Santana do Livramento, Candiota, Bagé e Dom Pedrito, em ordem decrescente, cada um com sua peculiaridade. Nos dois primeiros, é bastante presente a viticultura corporativa, responsável pelas grandes áreas. Já Dom Pedrito destaca-se por concentrar empreendedores e, Bagé, pelo número de produtores independentes, no contexto da região. Santana do Livramento continua sendo o principal polo - trata-se da maior área de vinhedos (mais de 980ha) e do maior número de produtores.

Os vinhedos da Campanha caracterizam-se por utilizar variedades nobres (Vitis vinifera), em um sistema de condução em espaldeira. A Figura 2 apresenta as principais variedades cultivadas na região, que possui 62% de seu vinhedo em uvas tintas, 36% em brancas e 2% em rosadas. Com relação ao perfil dos cultivares, a Campanha Gaúcha possui cerca de 55 variedades em produção (fora coleções) - 36 tintas, 15 brancas e 4 rosadas. Dentre as tintas, a variedade principal é a Cabernet Sauvignon, que ocupa cerca de 36% entre as uvas tintas, mas está começando a perder espaço. A partir de 2005-2006, as uvas para espumantes passam a ser valorizadas, o que traz um aumento no cultivo da Pinot Noir, hoje 10% entre as tintas. Outros dois destaques nas variedades tintas são a Tannat (16% das tintas), Merlot (15%) e a Cabernet Franc (6%). O Tannat produzido na região vem ganhando reconhecimento e premiações, em nível nacional e internacional. Os produtores locais destacam que a Campanha possui condições físicas e climáticas que se assemelham às do Uruguai, conhecido internacionalmente pela qualidade do seu Tannat. Dentre as variedades brancas, as principais são a Chardonnay (49% das brancas), Sauvignon Blanc (13%), Riesling (10%) e Gewurztraminer (5%), que são utilizadas na produção de espumantes e vinhos varietais.

Saindo do vinhedo para a comercialização e a elaboração, o destino das uvas produzidas na Campanha Gaúcha é a vinificação em instalações próprias (cerca de 54%), venda para outras vinícolas (45%) e, em menor escala, venda para consumo in natura (1%). As vinícolas da Campanha elaboram seus vinhos majoritariamente, a partir de vinhedos próprios. A compra de uvas ocorre em casos pontuais, quando os vinhedos estão em implantação ou por oportunidade de negociação. O destino da produção é a venda para a Serra Gaúcha em todos os vitivinicultores entrevistados, sejam eles empreendedores ou produtores independentes. Em termos de estrutura de vinificação, a região passa por uma fase de realocação, por parte da viticultura corporativa, ao mesmo tempo em que os novos empreendedores realizam investimentos, mas buscam otimização e parcerias. Nesse ponto, é importante compreender que um dos grandes desafios da região está em superar as dificuldades logísticas, uma vez que a região está distante dos mercados consumidores e, também, dos principais fornecedores.

No Mapa 4 é possível visualizar a presença de instituições de ensino e pesquisa na região. Destacam-se os investimentos federais, recebidos nos últimos 10 anos, período em que foi criada a Universidade Federal do Pampa, além da expansão da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, que trouxe para a região unidades do IF Sul-rio-grandense e do IF Farroupilha. A região também conta com Polos de Educação a Distância (EaD). Tal movimento propiciou a qualificação, em nível superior e técnico, em diversas áreas, o que inclui a vitivinicultura. Atualmente, a região possui o primeiro e o único Bacharelado em Enologia do país, no campus Dom Pedrito da Unipampa. Além disso, o campus Pelotas do IF Sul-rio-grandense oferece o curso de Tecnólogo em Viticultura e Enologia. A presença de tais cursos é bastante relevante, sobretudo se for considerado que, até 2015, o país contava com apenas seis instituições oferecendo cursos superiores na área3. Além disso, a região possui formações que têm potencial para atuar diretamente na cadeia vitivinícola, tais como, Agronomia, Administração e Engenharias de Alimentos, Química e de Produção, entre outros cursos. Aliado a isso, as unidades da Embrapa Pecuária Sul (Bagé) e Embrapa Clima Temperado (Pelotas) acabam por interagir com os atores, mesmo que não diretamente, nos projetos de vitivinicultura.

Com relação ao enoturismo, a região vem presenciando o investimento em rotas e novas estruturas, a partir da Associação ou de iniciativas individuais das vinícolas. As novas vinícolas construídas possuem estrutura para enoturismo, desde a sua concepção, que vão de área para degustação até estrutura para receber eventos. O fluxo de turismo ainda é relativamente baixo, principalmente, se comparado a outras regiões do país; contudo, já mostram um impacto positivo na divulgação da região e das vinícolas e seus vinhos. Algumas das tendências da região são maiores investimentos em promoção e canais de comercialização, enoturismo e, até mesmo, expansão para outras regiões.

Percepções e práticas de vitivinicultura sustentável na região

Antes de iniciar a análise das práticas de sustentabilidade nos vinhedos da Campanha, se faz necessária uma contextualização, de modo a justificar a aderência do tema na região - afinal, por que avaliar a sustentabilidade na Campanha e não em outro (s) vinhedo (s) do Brasil?

A questão pode ser respondida levando em conta fatores objetivos e culturais, que vão das práticas atuais e potencial técnico, até a motivação e engajamento dos atores locais. Em termos técnicos, devido às condições edafoclimáticas propícias, a Campanha está sendo considerada, por especialistas, como uma das regiões do país mais favoráveis para práticas de vitivinicultura sustentável e a redução de agroquímicos. Se trata de um vinhedo em expansão no contexto nacional, favorável para aplicação de novas práticas, com disponibilidade de áreas, o que possibilita escolhas de locais adequados, com a utilização de métodos de condução já alinhados com práticas sustentáveis. Apesar de ser um vinhedo emergente no contexto do Brasil, conta com uma participação importante de atores e vinícolas tradicionais da Serra Gaúcha e possui estrutura institucional para uva e vinho, como pode ser visto no tópico anterior. Aliado a isso, a Campanha foi o primeiro vinhedo fora da Serra Gaúcha a iniciar o processo de Indicação Geográfica (IG), o que denota sua representatividade no cenário vitivinícola brasileiro. Ao mesmo tempo, a região possui desafios importantes em termos ambientais, como a conservação da biodiversidade no Bioma Pampa, além de ser um importante ponto de recarga do aquífero Guarani.

A análise dos potenciais e práticas na Campanha foi acompanhada de todo um estudo sobre a vitivinicultura sustentável no contexto internacional, que contou com participação em eventos e debates, entrevistas com experts, além da análise de protocolos e certificações relacionadas à sustentabilidade (tais como, ISO 14000 e 26000, GRI e Pegada de Carbono). Especial atenção foi dada aos protocolos de vitivinicultura sustentável: foi realizada a análise de protocolos em vigor em seis países (África do Sul, Austrália, Nova Zelândia, Estados Unidos, Chile e França). Ao mesmo tempo, foram realizadas visitas técnicas para verificação in loco de programas e práticas de sustentabilidade em outras regiões do Brasil, além de França, Itália e Espanha.

Outra ressalva que se faz necessária é com relação a abordagem do tema da sustentabilidade. A condução da pesquisa partiu do pressuposto que sustentabilidade é um conceito interdisciplinar e multiescalar, que não pode ser dissociado de seu contexto e nem reduzido à dimensão ambiental. Desse modo, as perspectivas e práticas de vitivinicultura sustentável foram estudadas em cinco dimensões, seguindo a proposta dos trabalhos de Magnaghi (MAGNAGHI, 2000, 2005), a saber: ambiental, social, econômica, político-institucional e territorial. Apesar dessa perspectiva integrada na condução da pesquisa, a escolha para o presente artigo foi focar o estudo na dimensão ambiental da sustentabilidade, de modo a dar uma maior densidade e profundidade à análise, relacionando os diversos temas inerentes ao seu contexto territorial.

A seguir os resultados serão apresentados em duas abordagens, iniciando com a percepção conceitual dos vitivinicultores sobre os temas da sustentabilidade e vitivinicultura sustentável, para então abordar as práticas atuais. Os dados foram organizados na forma de mapas conceituais, sistematizando as entrevistas, observações e análises realizadas.

Sustentabilidade na visão dos vitivinicultores

A análise do discurso dos vitivinicultores acerca do tema da sustentabilidade revelou quatro abordagens principais, que estavam relacionadas com os três pilares clássicos de sustentabilidade – ambiental, social e econômico – como pode ser visualizado no mapa conceitual a seguir (Figura 3). O discurso mais frequente dos vitivinicultores da Campanha, refletindo sobre o tema, parte do conceito de que sustentabilidade seria uma produção que não agride, ou minimiza o impacto ambiental. Outra abordagem que se destaca é a continuidade, geralmente vinculando a dimensão econômica com a manutenção no longo prazo. Ainda, continuidade pode estar relacionada a minimizar o impacto, como, por exemplo, quando sustentabilidade foi definida como “conseguir uma produção com a mínima agressão ao meio ambiente e que mantenha a viabilidade por tempo indeterminado” (Entrevista 2).

Figura 3. Percepção dos vitivinicultores da Campanha sobre o tema da sustentabilidade.

Figura 3. Percepção dos vitivinicultores da Campanha sobre o
            tema da sustentabilidade.

A abordagem de pensar no futuro ou gerações futuras pode aparecer de maneira mais isolada, relacionada apenas à produção, como por exemplo quando a sustentabilidade foi definida como: “acho que é produzir no presente pensando no futuro” (Entrevista 14), ou ainda, ser associada à sustentabilidade ambiental e à redução de agressão ou impacto. Por fim, o equilíbrio apareceu como uma abordagem mais ampla, retomando as dimensões econômica, social e ambiental da sustentabilidade. As definições que utilizaram como base o tema equilíbrio tendem a ter um maior escopo e acabam mesmo por contemplar os temas conceituais e definições anteriores.

Se sustentabilidade muitas vezes não é um conceito claro, vitivinicultura sustentável pode assumir diversas nuanças, que vão da agricultura orgânica à redução de emissões. Em termos conceituais, na maioria das vezes, vitivinicultura sustentável é entendida como sinônimo ou decorrência do conceito de sustentabilidade. A temática ambiental é frequente e foi o pilar da sustentabilidade mais bem descrito, citando exemplos de impacto no solo e redução de agroquímicos. O mapa conceitual a seguir (Figura 4) sistematiza as principais ideias a respeito do tema da vitivinicultura sustentável.

Figura 4. Percepção dos vitivinicultores da Campanha sobre o tema da vitivinicultura sustentável

Figura 4. Percepção dos vitivinicultores da Campanha sobre o
            tema da vitivinicultura sustentável

Na definição de vitivinicultura sustentável, verificam-se duas abordagens. A primeira decorrente de minimizar agressão ou impacto, e outra que relaciona à continuidade e ao equilíbrio. Para o primeiro caso, no mapa conceitual acima, observa-se novamente a ligação entre sustentabilidade (nesse caso, vitivinicultura sustentável), produção e a abordagem da não agressão, que aqui toma a forma de minimizar impacto - o que deixa implícita a consciência de que a vitivinicultura causa impacto à sustentabilidade ambiental. Em outra análise, a continuidade e o equilíbrio trazem uma noção de ecossistema. Ao relacionar o impacto ambiental da vitivinicultura - considerando vinhedo, vinícola e distribuição - são destacados os agroquímicos e os impactos no solo e com relação ao uso da água, fazendo menção ao vinhedo como principal fonte de impacto. Os que se referiram à vinícola mencionaram a questão dos resíduos de vinificação. Não foram diretamente identificados pelos vitivinicultores impactos relativos ao processo de distribuição.

Práticas atuais de vitivinicultura sustentável

Tão importante como compreender o entendimento dos vitivinicultores sobre o tema, é verificar como a abordagem da sustentabilidade é levada para a prática. O mapa conceitual a seguir (Figura 5) mostra as principais iniciativas identificadas e como são relacionadas e articuladas, sob o ponto de vista dos vitivinicultores. É interessante observar que, muitas vezes, os vitivinicultores realizam ações de vitivinicultura sustentável, mas não as identificam como tal, o que pode ser visto quando questionados diretamente sobre o tema. Todavia, quando perguntados sobre ações mais específicas, como, por exemplo, relacionadas à conservação do solo, eles relatam diversas iniciativas, que podem ou não estar formalizadas em programas ou manuais. Apesar de não existirem programas formalizados de vitivinicultura sustentável, conforme os produtores entrevistados, foram verificadas ações, em diversas áreas, que englobam vinhedo e vinícola, como pode ser visto no Quadro 1.

Figura 5. Práticas de sustentabilidade ambiental.

Figura 5. Práticas de sustentabilidade ambiental.

Fonte: Flores, 2015.

 

Áreas Vinhedo Vinícola
Água x x
Ar x
Efluentes x
Resíduos sólidos x x
Energia x
Biodiversidade x x
Práticas agrícolas x

Com relação à água, todos os entrevistados realizam monitoramento da qualidade da água, que pode se dar uma vez ao ano, ou até diariamente, na época da safra. Além disso, também é presente a captação da água da chuva, em estrutura vinculada ao telhado das instalações, prática identificada apenas em produtores que possuem vinícolas. Outro ponto relacionado a vinícolas é o tratamento de efluentes, obrigatório para vinícolas pela legislação brasileira, que são consideradas com alto potencial poluidor (CONAMA, 1997). Não foram identificadas ações para tratamento do efluente nos vinhedos, decorrentes de lavagem de equipamentos e aplicação de agroquímicos, mas, sim, iniciativas para reduzir a geração, como a pulverização com baixo volume de calda.

No quesito qualidade do ar, as principais iniciativas identificadas são a manutenção dos veículos, para redução de emissões, e a regulagem dos pulverizadores. Alguns produtores da Campanha relatam problemas com deriva de agroquímicos aplicados em outras culturas na região, sobretudo arroz e soja. A aplicação com o uso de aviões acaba por atingir alguns vinhedos, contaminando-os; todavia, apesar de uma preocupação, esse ainda é um fato isolado a alguns locais. A questão dos gases do efeito estufa não é considerada um elemento central e não foram identificadas ações diretamente relacionadas para essa problemática.

Nas iniciativas relacionadas à energia, destacam-se ações voltadas para eficiência energética, como o uso de iluminação e de ventilação natural, lâmpadas econômicas e isolamento térmico. Com relação ao isolamento térmico, foram encontradas iniciativas com a utilização de espelho d’água, de muros vegetais, ou ainda, pelos materiais utilizados na construção. Uma das vinícolas da Campanha tem hoje 100% de sua necessidade suprida por energia solar. A iniciativa inovadora evidencia um potencial que pode ser mais bem aproveitado em um país como o Brasil. De qualquer modo, ressalta-se que o país possui cerca de 41% de sua matriz energética, a partir de fontes renováveis, uma taxa entre as mais elevadas do mundo.

Para os resíduos sólidos, em geral, é realizada a separação e/ou coleta seletiva. Sobre os resíduos especiais, podem ser encaminhados para coleta e até vendidos, como o óleo combustível. Em relação à biodiversidade, não foram identificadas muitas ações que tratassem diretamente a questão, ou projetos dedicados ao tema. Dentre as iniciativas, destaca-se a parceria para realização de projetos de pesquisa e cooperação com a ONG Bird Life, no âmbito do projeto “Alianza del Pastizal”. Foram identificadas também iniciativas de paisagismo usando vegetação nativa. Além disso, existem as práticas previstas na legislação brasileira, como a manutenção de vegetação nativa, a chamada Reserva Legal, além das APPs - as Áreas de Preservação Permanente (BRASIL, 2012).

As práticas agrícolas são consideradas um fator central para vitivinicultura sustentável. Isso pode ser visto desde a definição e as orientações da OIV para o tema, quanto nos protocolos analisados. Essas iniciativas se expressam já no momento de implantação do vinhedo, com a realização de estudos de solo, para escolha do local e adaptação dos clones, assim como todo um planejamento e design do vinhedo, de modo a otimizar a insolação e a favorecer o escoamento da umidade. A gestão do solo, com ações para conservação e prevenção de erosão, pode ser considerada uma área à parte e ocupa lugar de destaque nos relatos dos vitivinicultores. Dentre as práticas estão a atenção com a erosão nas encostas e manutenção da cobertura vegetal, com o uso do campo nativo ou de pastagens, contribuindo para a fixação do nitrogênio e para controlar o crescimento da vegetação, reduzindo - em alguns casos, até mesmo, erradicando – a aplicação de herbicidas.

A questão dos agroquímicos aparece como o principal impacto ambiental da vitivinicultura, na percepção dos vitivinicultores. Nesse tópico, os atores entrevistados afirmam manter registro das aplicações e fazer armazenagem em local parcialmente adequado ou adequado, conforme legislação vigente. Ressalta-se que as normas brasileiras são bastante exigentes nesse sentido. A legislação em vigor institui, por exemplo, a responsabilidade compartilhada pelos resíduos, o que implica no recolhimento e na destinação adequada das embalagens de agrotóxicos (BRASIL, 2000). A organização do setor, a partir de 2002, instituiu um sistema nacional para organizar a logística reversa de tais embalagens. Em 2011, estimava-se que o volume de recolhimento de embalagens no Brasil chegava a 94%, colocando o país na liderança no contexto internacional. Em segundo lugar, viria a França, com 77%, seguida pelo Canadá, 73%; já a Alemanha e os EUA ocupam a quinta e nona posição, com 68% e 33%, respectivamente (INPEV, 2013). A região conta com uma usina responsável pelo tratamento e destinação final no município de Dom Pedrito.

A produção orgânica é considerada ainda de difícil implantação; já foram feitos testes em diversas áreas, mas que não tiveram continuidade. Em todos os casos, foi apontado que a iniciativa se deu em anos com condições climáticas pouco favoráveis, muito chuvosos, o que dificultou o controle de doenças. Além disso, segundo os vitivinicultores, os testes foram feitos com variedades que talvez não fossem as mais adequadas. Outro ponto é que os vinhedos passaram por reconversão. O que se estima é que um vinhedo que iniciasse no sistema orgânico teria melhores condições de sucesso. Alguns produtores afirmam que a produção orgânica é possível, mas que o mercado ainda não valoriza devidamente o vinho orgânico, como já acontece com o suco. Isso é o que desencoraja a “tomada de risco” para a produção orgânica, que estaria mais sujeita a perdas. Como medidas de controle alternativo de pragas, foram levantados, por exemplo, o uso de feromônios, para combate de insetos, ou o monitoramento através de iscas, para reduzir a aplicação de inseticida. Outra ação, para combate às formigas, é a cobertura do caule de plantas com plástico ou lã. Para redução de herbicidas, além da cobertura vegetal já citada, alguns produtores utilizam ovinos, visando ao controle da vegetação.

Todas essas iniciativas demonstram uma abertura dos produtores da Campanha, para testes e para a utilização de técnicas alternativas, no âmbito da vitivinicultura sustentável. É interessante observar que as iniciativas levantadas tocam a todos os aspectos de gestão ambiental, presentes na definição de vitivinicultura sustentável da OIV, que são abordados em maior ou menor profundidade. A ausência de uma formalização de tais iniciativas, em programas ou políticas de atuação, dificulta o seu reconhecimento, assim como a articulação de ações, o que poderia potencializar um desempenho mais efetivo nesse sentido.

Considerações Finais

Estudar a vitivinicultura e seu desenvolvimento acaba por lançar luz sobre a própria história da humanidade, considerando a evolução das sociedades, em termos tecnológicos, de hábitos de uso e consumo, culturais e econômicos. Assim como os vinhedos impactam a paisagem e os territórios, também são afetados por questões que permeiam a sociedade como é o caso da sustentabilidade. Nesse sentido, a discussão sobre vitivinicultura sustentável não é um tema isolado, mas parte de um movimento que tem raízes antigas, e que vem em crescente importância em nível internacional.

Ao mesmo tempo, a expansão da vitivinicultura ao longo da história explora novas fronteiras geográficas, seja em termos de produção ou de consumo. Tal expansão dá origem a vinhedos com expressão e identidade próprias, em um diálogo constante entre vinhedo e território. Como pode ser visto ao longo do texto, o vinhedo da Campanha faz parte de uma expansão relativamente recente no contexto brasileiro e internacional, e já conta com uma estrutura institucional própria, o que inclui associações, enoturismo e estrutura de pesquisa e ensino na área. Para além disso, o vinhedo da Campanha acaba por constituir sua identidade trazendo elementos ligados à cultura do gaúcho e ao bioma pampa, em um contexto no qual a carência de antecedentes históricos ou culturais do mundo do vinho é compensada por planos de negócios estruturados e busca de soluções tecnológicas para mediar esse diálogo vinho e território. Nesse sentido, o tema da sustentabilidade nos vinhedos da Campanha acaba por refletir tanto uma discussão em nível internacional sobre vitivinicultura sustentável, como uma inclinação local para o tratamento do tema.

Ao longo do artigo a região da Campanha foi apresentada de forma ampla, o que inclui seus antecedentes históricos, desenvolvimento recente e estrutura de produção. As perspectivas de desenvolvimento para a região se dão em diversas dimensões e passam pela atuação das associações locais, no sentido de fomentar ações integradas e o próprio posicionamento da região vitivinícola em contextos mais amplos. Com relação à sustentabilidade, mesmo analisando somente a dimensão ambiental, pode ser percebida a presença de diversas iniciativas, com potencial de serem articuladas em um programa regional, que formalize o que está em andamento e posicione a região como atuante no tema, haja visto o que ocorre em outras regiões vitivinícolas do mundo (África do Sul, Califórnia, Chile, entre outros). A presença de ações em áreas diversas, correlatas com os protocolos internacionais de vitivinicultura sustentável analisados, são mais uma prova do potencial da região da Campanha para fortalecer sua atuação nesse sentido.

Todavia, deve ser considerado que sustentabilidade é um conceito amplo, com múltiplos usos, que requer uma abordagem integrada e trabalho multidisciplinar. Nesse sentido, a discussão de vitivinicultura sustentável também deve permear a própria sustentabilidade da cultura na região. Assim, a dimensão ambiental aqui proposta até pode ser olhada individualmente para permitir maior detalhamento, mas o tratamento do conceito não pode abdicar de olhar sustentabilidade em escopo amplo, incluindo as dimensões social, econômica, político-institucional e territorial, trabalhando sustentabilidade não só como um desafio, mas como oportunidades para fortalecer a vitivinicultura da região.

Agradecimentos

À Universidade Federal do Rio Grande do Sul e ao Programa de Pós-Graduação em Geografia, em especial à Professoar Rosa Maria Vieira Medeiros pela orientação e importante contribuição ao desenvolvimento dessa pesquisa. À Chaire-UNESCO “Culture et Tradition du Vin”, pelo suporte acadêmico e financeiro para valorização da pesquisa. À CAPES, pelo suporte através do “Programa Ciência sem Fronteira”, edital “Pesquisador Visitante Especial”. Ao Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS), pela estrutura, ambiente e suporte financeiro disponibilizado. Aos valiosos comentários, discussões, oportunidades e ao tempo dedicado por Jocelyne Pérard, Olivier Jacquet, Serge Wolikow, Claudine Wolikow, Marie-Claude Pichery, Joël Rochard, Ivanira Falcade e Jorge Tonietto.

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Notes

1 “Vento minuano” ou simplesmente “minuano” é o nome regional dado à corrente de ar de origem polar, que ocorre nos estados do Rio Grande do Sul e sul de Santa Catarina. Return to text

2 Os vitivinicultores da Campanha Gaúcha podem ser classificados em três grupos – “vitivinicultura corporativa”, “novos empreendedores” e “produtores independentes” - conforme critérios usados para delimitação, por Flores e Medeiros (2010) e Flores (2011). Return to text

3 Os cursos superiores na área de Enologia e Viticultura no Brasil são oferecidos no Rio Grande do Sul (IFRS, IFSul-rio-grandense e Unipampa), Santa Catarina (IFSC), São Paulo (IFSP) e Pernambuco (IFSertãoPE). Destes, apenas a Unipampa oferece bachalerado; os demais são tecnólogos. Return to text

Illustrations

References

Electronic reference

Shana Sabbado Flores, « A região dos "Vinhos da Campanha" e suas perspectivas de sustentabilidade », Territoires du vin [Online], 9 | 2018, 31 August 2018 and connection on 21 November 2024. Copyright : Licence CC BY 4.0. URL : http://preo.u-bourgogne.fr/territoiresduvin/index.php?id=1639

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Shana Sabbado Flores

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS)

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